sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Duas Concepções de Linguagem

Como foi largamente defendido por Mikhail Bakhtin, a função básica da língua é a comunicação. Não há comunicação sem língua nem língua que não seja usada em atos de interação comunicativa. A comunicação é tão fundamental que há até mesmo graus de entendimento, de acordo com o contexto dos comunicantes. Entre dois brasileiros, marido e mulher, às vezes nem é necessário o uso de palavras para que se entendam, por conviverem quotidianamente e, portanto, compartilharem muitas experiências. Entre duas pessoas de uma mesma cidade ainda há muitas experiências compartilhadas, mas em menor grau do que as que há entre cônjuges. Entre um brasileiro do Oiapoque e outro do Chuí ainda há uma grande quantidade de informações compartilhadas, mas em grau menor do que a que há entre os que moram numa mesma cidade. Entre brasileiros e portugueses, há menos informação compartilhada ainda, embora compartilhem um sistema lingüístico e algo de história. Por fim, entre um brasileiro e um chinês que tenha aprendido o português em seu país, a comunicação será bem menos eficaz do que em qualquer um dos casos anteriores.
O importante é que mesmo entre o chinês e o brasileiro algum tipo de comunicação se dá porque compartilham o sistema abstrato de língua, o que viabiliza a decodificação de uma mensagem enviada por um deles ao outro, sistema em geral adquirido via gramática normativa e dicionário (o Aurélio, p. ex.). Mas, quando saímos do âmbito do social, notamos que há mais coisas compartilhadas. Por exemplo, os portugueses e ameríndios que se viram frente a frente em Porto Seguro em 1500 não tinham nada em comum do ponto de vista cultural, embora um precário entendimento tenha havido, como se vê no relato de Caminha. Trata-se do nível biológico: ambos eram terráqueos, animais e humanos, portanto, compartilhavam as condições de vida na face da Terra. Daí terem se entendido até certo ponto mediante o uso de gestos e atitudes.
Ainda no domínio do biológico temos a fotossíntese, a fecundação e outros tipos de interação. Seriam também exemplos de "comunicação biológica". Por fim, temos os processos de sedimentação, de formação de rochas, de atração e repulsão entre os corpos, além da "comunicação química", "bioquímica" e semelhantes. O que há de comum a todos esses casos é a interação. O que mostra que ela é universal, e um universal muito mais interessante do que os "universais" da gramática gerativa.
Por precisão terminológica, usarei o termo interlocução (ou diálogo) para a interação que pressupõe um código. No caso, o código é a língua (L), que viabiliza o entendimento da mensagem formulada pelo falante (F) e enviada ao ouvinte (O), no processo de interlocução, que é comunicação humana, ou comunicação propriamente dita. A mensagem geralmente está contida em um enunciado. Para a interação que se deu entre portugueses e ameríndios bem como a que se dá entre a criança e os pais nos momentos iniciais de aquisição de língua, eu emprego o termo contágio sugerido por Schaff (1968: 127). Por esse termo, ele entende o tipo de interação que "transfere conhecimento de estados emocionais de um indivíduo para outro, ou fornece informação sobre uma certa situação hic et nunc". Os exemplos que ele dá são a "comunicação" entre abelhas e entre formigas. Como se vê, interlocução é interação no nível do superorgânico, e contágio é interação no nível do orgânico, pelo menos eu seus estágios mais evoluídos. Ficou faltando a interação que se dá entre elementos químicos e físicos, ou seja, no nível do inorgânico. A esse tipo de interação pode-se dar o nome de intertração, que compreende tanto a atração quanto a repulsão entre os corpos. Aparentemente, interação intertrativa se dá não só no reino mineral, mas provavelmente também nos momentos iniciais do nível biológico. Um exemplo do primeiro seria o composto que consta da combinação de átomos ou de íons com carga oposta, de dois ou mais elementos, mantidos juntos pela força de atração, como o ato de fecundação, que é uma troca bioquímica.
Partindo do pressuposto de que as únicas coisas eternas e incriadas, ou seja universais, são a matéria e a energia (movimento), como já sugerira Heráclito e Engels, podemos ver na figura 1 que a interação típica do nível do inorgânico é a intertração, ou seja, a atração e a repulsão (1). A interação típica do nível do orgânico animal (biológico) é o contágio (3). A interação típica do nível do superorgânico (social) é a interlocução (5). O contágio e a interlocução são ambos comunicação: contágio é comunicação animal, ou seja, Verhalten (comportamento) como se diz em alemão; interlocução é comunicação humana, ou seja, Handlung (ação social), também do alemão. Mas, a intertração pode dar-se também no orgânico (2), como na fecundação do óvulo pelo espermatozóide, e o contágio pode ocorrer também no nível humano (4), isto é, os comportamentos animais subsistem no ser humano. Só a interlocução (diálogo) é típica e específica do ser humano, pois pressupõe um código socialmente sancionado. Como base para que intertração, contágio e interlocução se efetivem, tem que haver a comunhão, que será examinada logo em seguida.
Tanto "contágio" quanto "intertração" foram usados por falta de termos mais adequados. Em vez de "intertração", pensei em usar "síncrise" 'comparação de opostos', da retórica antiga. O termo vem do grego sýnkrisis 'combinação, comparação', via latim, e é composto de syn 'com' + kri (de krinein 'separar') + sis '-ise'. Ele contém a idéia de junção e a de separação, o que explicaria os movimentos de atração e repulsão. Porém, decidi manter "intertração" a fim de ter três termos latinos. Quanto ao termo "contágio", é interessante porque contém o prefixo latino "con-", presente também em "comunicação" e "comunhão".
Sebeok tem sido um pioneiro nessa visão abrangente de interação, embora ele use o termo comunicação para todos os casos de interação (Sebeok, 1973; 2002).
O processo de aquição da língua pela criança se inicia intertrativamente (ou sincriticamente), já antes do nascimento, ou seja, ainda no útero da mãe. A partir do nascimento, a interação evolui para o contágio. Com a idade de 0;10,29, aproximadamente, inicia-se a fase da interlocução propriamente dita, ou seja, quando a criança profere espontaneamente seu primeiro enunciado de uma palavra, o que em geral permite um pequeno diálogo com o adulto.
Para que a interação se dê em qualquer um dos três níveis (intertração, contágio, interlocução), é necessário que os interagentes entrem em comunhão. Comunhão é uma espécie de preparação das condições para que a interação ocorra. Em cada nível, ela terá características diferentes.
Quem propôs o conceito foi Malinowski (1972: 312), sob o nome de comunhão fática. Para ele, "...não é preciso ou, talvez, nem deva até haver coisa alguma a comunicar. Desde que existam palavras para trocar, a comunhão fática leva selvagens e civilizados, por igual, para uma agradável atmosfera de intercurso polido, social." O conceito foi retomado por Jakobson no contexto de suas seis funções da linguagem. Para ele, a função fática "pode ser evidenciada por uma troca profusa de fórmulas ritualizadas, por diálogos inteiros cujo único propósito é prolongar a comunicação" (Jakobson, 1969: 126). Ele afirma ainda que essa função ocorre tipicamente também em aves falantes, de modo que "a função fática é a única que compartilham com os seres humanos". Por fim, ele diz que a interação fática é a primeira da criança. Para o primeiro autor, a interação comunial pressupõe uma língua, embora para o segundo nem sempre isso seja necessário.
O crioulista William Samarin também faz uso de um conceito semelhante, ou seja, simbiose ou confraternização ("fraternization", referindo-se ao francês "fraternisation"). De acordo com ele, "algum tipo de simbiose é necessário para que um pidgin se desenvolva" em uma situação de contato de línguas. Entre as partes contatantes, havia "todo um conjunto de relações que faziam com que a comunicação se tornasse necessária ou desejável" (Samarin, 1988: 160-161). O fato é que o termo simbiose poderia perfeitamente ser usado no lugar de comunhão. Não obstante isso, prefiro comunhão devido a suas ligações óbvias com comunicação.
Quando recuperamos o sentido religioso original da palavra, verificamos que a existência de um código comum não é necessária para que haja comunhão. O mais importante é o próprio compartilhamento, não importa de quê. Tanto que alguns dicionários definem comunhão como designando "compartilhamento de sentimentos e pensamentos". Nesse sentido, comunhão é um conceito ecológico mais amplo. Todos os seres animais tendem a ter atos de comunhão, e não apenas as aves, como sugeriu Jakobson, para proteção, reprodução, lazer etc. Veja-se o caso das bactérias. Talvez mesmo os vegetais interajam comunialmente. Pode ser que até mesmo a força de coesão seja uma espécie de comunhão no reino mineral. Sem aprofundar este tema, minha proposta é de que comunhão não pressupõe uma língua comum. Pelo contrário, é a comunicação e, por extensão a língua, que pressupõem algum tipo de comunhão prévia. Como disse Schaff (1968: 159) "... o processo de comunicação só ocorre no mundo animal quando envolve o processo de cooperação, processo de ação social sui generis". Por "cooperação", entenda-se atos de comunhão.
No modelo de Jakobson, a função fática é a abertura, manutenção e fechamento do canal de comunicação. No compartilhamento de sentimentos entre indivíduos que se vêem juntos, a comunhão tem o mesmo papel, ou seja, o de preparar o cenário em que a comunicação pode se dar. Isso implica os momentos de encetar, manter e encerrar a comunicação.
No caso dos seres vivos, e os humanos não são exceção, sempre que se vêem juntos, interagem de alguma forma, mesmo que não tenham nenhum código comum. Se essa interação for de hostilidade (simbiose desarmônica), poderá haver lutas, redundando até mesmo na eliminação do outro, ou de todos. Nesse caso, o agrupamento heteróclito acaba se desfazendo. Se a interação for de solidariedade (simbiose harmônica), os seres poderão passar a constituir um todo relativamente homogêneo, uma comunidade, como se pode ver em Couto (1999, 2002:180). No nível do orgânico, ocorre algo semelhante. Um exemplo seria a fertilização do óvulo que dá lugar ao feto. No nível do inorgânico, temos a força de atração e a de repulsão. Se prevalecer a segunda, as partículas (os corpos) se repelirão; se prevalecer a primeira, poderão se aderir umas às outras, formando um novo corpo.
Alguns poucos autores salientam a importância do espaço nesse contexto. Assim, quando indivíduos, mesmo de culturas diferentes, se vêem juntos em um mesmo espaço, ou seja, entram em contato, por uma questão de sobrevivência acabam entrando em comunhão, como a que se viu em Porto Seguro em 1500 entre portugueses e ameríndios. A partir dessa comunhão, inevitavelmente surgirão Tentativas Individuais de Comunicação (TIC). Caso a convivência continue, essas tic acabam levando à emergência de uma comunidade e, conseqüentemente, à emergência de uma linguagem comum, como começou a ocorrer nos primeiros núcleos de colonização. Esse processo está desenvolvido com relativo detalhe no capítulo "Ecologia da Evolução Lingüística".
Numa situação de contato de povos e línguas diferentes (contato interétnico) é claramente a solidariedade (comunhão) que começa a preparar o terreno para o surgimento de uma comunidade, como sugeriu Samarin. Nos primeiros momentos do encontro, tem-se apenas uma agregação cinética, como as pessoas no elevador, que nada têm em comum. Outro tipo seria a agregação tropista, como as pessoas debaixo de uma marquis para se proteger da chuva. Em nenhum desses casos há comunhão. No entanto, quando a convivência no espaço perdura, todos os seres animais tendem a se agregar e, uma vez agregados, precisam interagir. O modo mais comum de interação é a comunhão, ou seja, o estar satisfeito com o simples estar junto. Se há alguma coisa para comunicar, isso é muito bom e bem vindo. Se não houver, não importa. O que importa é a solidariedade, a predisposição para a convivência. No caso da criança adquirindo a língua de seu meio, isso se aplica in totum.
Em síntese, no reino do inorgânico, a comunhão consiste na co-presença espácio-temporal de partículas ou elementos, que se atrairão. Nesse caso, elas se aderirão uma à outra, formando um todo complexo. A sedimentação que dá lugar a rochas seria um exemplo. No reino do orgânico, ou biológico, a co-presença espácio-temporal pode provocar um contágio, que pode levar, entre outras coisas, à formação de um novo ser, como na fusão de uma célula haplóide (espermatozóide) com a do sexo oposto (óvulo) durante a fecundação para formar um zigoto. No reino do superorgânico, a co-presença leva a uma solidariedade (comunhão), inclusive por uma questão de sobrevivência, que é o primeiro passo para o surgimento de uma comunidade e, conseqüentemente, de uma linguagem. A última, por sua vez, faculta a comunicação interlocucional.
Vejamos agora a estrutura do Ato de Interação Comunicativa, que constitui a Ecologia da Interação Comunicativa (EIC). O modelo clássico de comunicação é o que se vê na figura 1, segundo o qual, para que uma mensagem, ou enunciado (E), enviada por um falante (F) a um ouvinte (O), seja entendida, tem que estar formulada em uma linguagem/língua (L) que F e O compartilhem.
O modelo da figura 2 tem sido considerado como muito estático. Eu acho que isso se deve ao fato de ele estar incompleto. Seguindo seus formuladores originais, faltam a fonte (fo) e o destino (de) da mensagem, e eu acrescentaria o tema, assunto ou contexto (c) da informação, como se pode ver na figura 3.
Esses dados adicionais são importantes, pois, entre outras coisas, permitem entender alguns dêiticos pronominais. Por exemplo, F sozinho é eu e fo sozinho é "ele1" (o "ele" que está comigo); f+fo equivale "nós" exclusivo; f+o dá o "nós" inclusivo (poderia ser também (fo+f)+o ou (fo+f)+o+de. Por outro lado, O sozinho é "tu"; de sozinho é "ele2" (o "ele' que está contigo); o+ de é "vós" exclusivo. o+de+fo é o "vós" inclusivo (inclui quem está com f). Existe ainda a possibilidade (fo+f)+e+(o+de) que equivale ao "nós" geral, ou seja, todos que estão envolvidos no Ato de Interação Comunicativa e até a comunidade inteira. Por fim, temos o lado A do modelo, que remete àquilo de que se fala que, nesse caso, dá lugar aos dêiticos espaciais e temporais, como "este", "esse", "aquele", os objetos e coisas presentes de que se fala, o "ele3", etc. Partindo dessa visão holística do modelo, nota-se que ele não é tão estático assim, mas um todo sistêmico cujas partes estão em constante interação.
Para dar apenas mais um exemplo de como esse modelo pode funcionar, vejamos a o caso de um prefeito monolíngüe de uma cidade do interior do Brasil que quer se comunicar com um prefeito, também monolíngüe, de uma cidade do interior da China, sendo que cada um tem um assessor que fala inglês. Primeiro, o brasileiro informa a seu assessor, em português, o que quer dizer ao prefeito chinês. Esse assessor passa a informação ao assessor do prefeito chinês, em inglês. Este último, por seu turno, passa a informação em chinês ao prefeito chinês. Mas, a interação pode continuar, com uma inversão da direção da mensagem, dando início a um movimento cíclico. Assim, vejamos que tipos de mensagens transitam em uma direção e outra.
Partindo do pressuposto de que a função fundamental e prototípica da língua é a de servir de base para o entendimento na interação face-a-face, ou seja, para influenciar o outro, a interlocução consta basicamente de uma solicitação, um enunciado de emissor ou falante, que deve ter uma satisfação do receptor ou ouvinte, mediante uma resposta ("enunciado de receptor"), ou um comportamento. O conjunto solicitação-satisfação constitui a célula da comunicação. Trata-se, portanto, do complexo "enunciado de F + enunciado de O", como representado na figura 1.
F1--------------O1
|                         |
O2--------------F2
Fig. 1

Só que, ouvinte não fala; ouvinte ouve. Assim, no momento em que O, como O1, reage à solicitação de F, na qualidade de F1, transforma-se, por sua vez, em F, no caso, F2, momento em que quem era falante (F1) se transforma em ouvinte, no caso, O2. Com isso, fecha-se o circuito, completando a célula da comunicação. Agora, falta examinar a natureza de cada solicitação, bem como de cada satisfação. Sabemos que podemos influenciar o outro mediante (i) ordem, (ii) pergunta e (iii) resposta a essa pergunta, ou seja, informação. Pode-se também fazer (iv) exclamações e (v) chamar a atenção de quem está próximo (vocativo). Cada um desses modos de atuar sobre o outro constitui um tipo de enunciado interlocucional, ou melhor, um AIC. Na verdade, a interlocução pode continuar, ou seja, o O2 da figura 1 pode transformar-se em F3, e o F2 da mesma figura transformar-se em O3 e assim sucessivamente, como sugerido na figura 2, que termina em reticências para deixar claro que o diálogo pode continuar.

F1-------------------O1 (Quanto custa isto?)
|                                 |
O2------------------F2 (Cinco reais)
|                                 |
F3------------------O3 (É muito caro!)
|                                 |
.............................
Fig. 2

Para entender esse fluxo dialógico, partamos da exclamação que uma freguesa faz diante de uma plaquinha indicando o preço de um produto na feira. Ela pode dizer: "Isto é muito caro!" De meu conhecimento, nunca houve uma análise da exclamação desta perspectiva. No entanto, quando a examinamos em profundidade, verificamos que ela surgiu diante da informação do preço (Cinco reais) que, por seu turno, foi uma informação antecipada à pergunta que qualquer freguês faria, ou seja, "Quanto custa isto?"
A solicitação-pergunta implícita, que o feirante previu que a freguesa faria, é um enunciado de F1 (quanto custa isto?) da freguesa (F1) para o feirante (O1). Quando este (O1) confeccionou a plaquinha e a afixou no produto, ter-se-ia transformado em F2, uma vez que deu uma satisfação-informação, sob a forma de uma plaquinha que contém a oração declarativa "[Isto custa] cinco reais". Nesse momento, a freguesa passa a ser receptora da mensagem do preço, ou seja, O2. Por fim, ela pode reagir, dizendo "Isto é muito caro!", momento em que se transforma em F3, e o feirante em O2. E assim por diante.
Eu gostaria de dar uma outra maneira de se encarar o fluxo interlocucional, partindo da eic que se dá no uso das adivinhas no crioulo português da Guiné-Bissau. Uma adivinha muito popular é cabás intchi os/boca cu dinti (uma cabaça cheia de ossos/a boca e os dentes). Na figura 3, temos o fluxo interlocucional que se dá nesse caso.

F1------------------O1  (dibinha, dibinha!)
|                               |
O2------------------F2 (anuência: dibinha certu)
|                               |
F3-----------------O3 (cabás intchi os)
|                               |
O4----------------F4 (resposta: boca cu dinti)
|                               |
F5------------------O5 (confirmação do acerto ou não)
congraçamento, confraternização, risadas
(comunhão)
Fig. 3

Primeiro, o perito em adivinhas propõe o desafio dibinha, dibinha, aproximadamente o nosso "O que é, o que é?" Nesse momento, ele é F1 e os ouvintes (O1). Para que a interação tenha continuidade, é necessário que os ouvintes reajam, transformando-se em F2, dizendo dibinha certu (= adivinha certo = está bem). Tendo ouvido isto como O2, lança o desafio, já como F3, cabás intchi os (uma cabaça cheia de ossos), que a audiência, como O3, tem que interpretar. Ao fazê-lo, a audiência (ou alguém dela) se transforma em F4 fornecendo a resposta boca cu dinti (a boca e os dentes), para o perito, que a recebe como O4. Este, por fim, e agora transformado em F5, ratifica ou retifica a resposta da audiência, que já é O5. Nesse momento, dá-se um congraçamento, uma confraternização, plenas de risadas. É um momento de comunhão, tomando-se o termo no sentido que foi apresentado acima.
Até aqui comentei a solicitação-pergunta, a satisfação-informação (oração declarativa) e a exclamação. Falta ainda, pelo menos, o vocativo que, aparentemente, não tem sido estudado da presente perspectiva. Ao que tudo indica, ele é uma pré-ordem, como em "Joãozinho, feche a porta!", dito pela mãe. Como a solicitação-ordem é dirigida diretamente a o, na interação face-a-face, não é necessário dizer "Você feche a porta." A co-presença de o e o já indica que a ação deve ser praticada por o. Dessa perspectiva, o vocativo parece ser uma espécie de substituto do sujeito. Em muitos casos, ele sozinho faz as vezes da ordem. A mãe poderia ter dito simplesmente "Joãozinho!" e ele saberia que ela estava mandando fechar a porta. Mesmo assim, a ordem continuaria existindo subjacentemente, apenas não foi manifestada.
Não é apenas a função de pré-ordem que o vocativo exerce. Ele pode ser também uma pré-pergunta, como o "oi" de "oi, tudo bem?" Outra possibilidade é ele ser uma pré-informação. Seria o caso de a mãe dizer para a filha: "Aninha, tá na hora do banho." Em latim o vocativo é usado para a exclamação, como na famosa expressão O tempora! O mores! (oh tempos, oh costumes!), de Cícero, e para o chamamento, como em Quousque tandem abutere, Catilina, patientia nostra? 'Catilina, até quando abusarás de nossa paciência?', também de Cícero. Parece que o vocativo pode substituir qualquer um dos enunciados que introduz, ou seja, a ordem, a pergunta, a declaração-informação. Uma exceção talvez seja a exclamação.
Aparentemente, a saudação seria um outro tipo de solicitação (solicitação-saudação), para iniciar e encerrar a comunhão. O início da comunhão seria o cumprimento, como no exemplo "oi, tudo bem?" O término do processo de comunhão seria a despedida. Interessantemente, o término parece ser mais primordial do que o chamamento para o início da comunhão. Tanto que geralmente a criança começa a reagir positivamente à expressão "tchau" a partir dos oito meses de idade proferindo-a em contexto adequado.
De outra perspectiva, a solicitação-ordem deve ser o enunciado mais primitivo, não requerendo uma satisfação verbal. Para se dizer "pare aí" ou "vem aqui!", não é nem mesmo necessário usar palavras; os gestos bastam. Tanto que os próprios animais fazem solicitação-ordem entre si. Nós podemos dar ordem para que uma pessoa se afaste de nós simplesmente empurrando-a, como fazem os demais animais. Além disso, sabemos que a comunicação homem-animal, que se dá nas fazendas do interior, consta de cinco tipos de "enunciados" (chamamento, afugentamento, acicate, parar, segurar [o carro]), mas todos eles se reduzem à ordem, como tentei mostrar em Couto (1995). Mesmo na comunicação humano-humano, a forma dos verbos que codifica a solicitação-ordem é o imperativo.
A pergunta e a resposta são mais elaboradas. Elas constituem elos da cadeia dialógica que só podem manifestar-se verbalmente. No caso do enunciado-informação, ou satisfação-informação, realizada por uma oração declarativa (de F2) pode haver também a informação-negação. Ainda não está claro se efetivamente o enunciado negativo é de F1 ou F2. Em prol de sua interpretação como enunciado de F2, temos o fato de que quando alguém diz "não tem ninguém lá dentro", referindo-se a uma casa fechada, está pressupondo uma pergunta sobre se há alguém lá dentro. O fato é que tanto o enunciado-afirmação quanto o enunciado-negação asseveram algo. Só que o segundo nega a verdade do primeiro, afirmando sua negação. Simbolizando a afirmação como P, temos que sua negação é ~P. Isso significa que, do ponto de vista da lógica, a negação pressupõe a afirmação. Entendido dessa forma, o enunciado-negação não seria de F2, uma vez que o enunciado-afirmação já o é. Há mais complicadores. Quando A pergunta a B "você foi ao cinema?" e B responde "não", esse "não" na verdade equivale a "eu não fui ao cinema."
Outro fato interessante é que praticamente em todos os crioulos do mundo a solicitação-pergunta é indicada pela simples elevação da voz, pela curva entonacional. Ademais, em muitas línguas não crioulas essa é a estratégia usada para a pergunta. Até mesmo em línguas como inglês, que tem o morfema interrogativo do, como em do you speak English?, pode-se dizer também simplesmente speak English? Também isso tem a ver com a Ecologia da Interação Comunicativa. Como falante e ouvinte estão um de frente para o outro, numa interação face-a-face, terminar o enunciado de modo literalmente suspenso, ou seja, com a voz se elevando, requer uma complementação, que é o que requer a solicitação-pergunta. Isso parece ser mais um dos universais da comunicação, se é que vamos falar em universais na língua.
Ainda no que tange ao enunciado-informação, existe o problema de alguns animais darem informação aos pares. Por exemplo, a famosa dança das abelhas tem por objetivo informar à colméia que em determinada direção há fonte de néctar para se fazer mel. Parece que a informação inclui até mesmo se há uma grande quantidade de material ou não. Com isso, esse enunciado seria também primitivo, porém não tão primitivo quanto a ordem, que existe na maioria dos animais, e pode ser feita apenas pelo contato físico. Informações como a das abelhas não parece ser comum em muitas outras espécies. Tudo isso precisa ser investigado mais pormenorizadamente.
Repetindo, a língua se forma e se transforma, ou seja, nasce, vive e definha em função dos Atos de Interação Comunicativa, ou da ausência deles. Dito de outro modo, por um lado, ela só pode nascer na interação, ou seja, das pessoas tentando se comunicar. Por outro lado, nos próprios atos de interação comunicativa concretos, a língua se altera para se adaptar a novas situações. Por fim, se as pessoas começarem a deixar de usá-la para se comunicarem entre si, por exemplo por estarem adquirindo outra língua, ela entra em obsolescência, podendo desaparecer.
Os aic são o corpo e a alma da língua. Poderíamos até mesmo compará-los ao holograma, uma vez que eles contêm em si, em miniatura, tudo que compõe a língua. O melhor lugar para se depreender a língua é na Ecologia da Interação Comunicativa. A aquisição de língua pela criança, a aprendizagem de L2 pelo adulto e a própria filogênese da linguagem começaram por Atos de Interação Comunicativa, que no início eram meras Tentativas de Interação Comunicativa. Como se pode ver no capítulo "Ecologia da Evolução Lingüística", a formação de novas línguas com genes (traços) de línguas pré-existentes passa pelo mesmo processo.
Retomemos a questão da aquisição da língua pela criança. Nas palavras de Bakhtin, "... a língua não se transmite; ela dura e perdura sob a forma de um processo evolutivo contínuo. Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada; eles penetram na corrente da comunicação verbal; ou melhor, somente quando mergulham nessa corrente é que sua consciência desperta e começa a operar... Os sujeitos não 'adquirem' sua língua materna; é nela e por meio dela que ocorre o primeiro despertar da consciência." Em nota de rodapé o autor acrescenta: "O processo pelo qual a criança assimila sua língua materna é um processo de integração progressiva da criança na comunicação verbal. À medida que essa integração se realiza, sua consciência é formada e adquire seu conteúdo" (Bakhtin, 1981: 108).
Tudo isso mostra que o famigerado papel ativo do aprendiz defendido pela gramática gerativa talvez não seja tão ativo assim. Na verdade, o de que o aprendiz precisa é entrar em comunhão com os que constituem a comunidade em que começa a viver a fim de entrar no fluxo de comunicação vigente nela. Aprender uma língua é aprender a comunicar-se, é adaptar-se. Tanto que o próprio Chomsky afirma que a aprendizagem de língua é "algo que acontece com a criança, não [algo] que a criança faz" (1997: 5). Por quê? Simplesmente porque, mesmo que não queira, pelo simples fato de ter nascido na comunidade x e não na comunidade y, aprenderá a língua da comunidade x. De certa forma, a aquisição da primeira língua pela criança se dá mediante sua absorção pelo fluxo interacional da comunidade em que se desenvolve. Não há como não aprender a língua nessa situação.
Nesse processo, o espaço é determinante. Sempre que pessoas se vêem juntas interagem. Uma das interações mais comum é a lingüística. Só que, para haver aic eficaz é necessário que haja um sistema prévio. Se ele não existe, cria-se um. O fato é que sem a co-presença no espaço não haveria aic, a despeito de atualmente a tecnologia permitir interação à distância. No entanto, esse tipo de interação é derivado, é secundário. A interação prototípica é a que se dá face a face. Como o assunto deste livro é o contato de línguas, gostaria de acrescentar que, na verdade, a comunicação é um tipo de contato, mesmo que intralingüístico, ou seja, interdialetal ou interidioletal. O aic é um contato em nível microscópico, intralingüístico.
Tudo que for dito nos capítulos subseqüentes será resultado de algum aspecto dos aic aqui comentados. Tudo na língua passa pela Ecologia da Interação Comunicativa. Vejamos, para terminar, apenas um exemplo do crioulo português da Guiné-Bissau. Tradicionalmente se tem dito que os verbos dessa língua vêm da forma não-marcada da terceira pessoa do singular do presente do indicativo. Eu, porém, acho que grande parte deles vêm é da forma do imperativo. Dois exemplos seriam bin (vir), que teria provindo da forma "vem!", segunda pessoa do singular, imperativo, e bai (ir), originário de "vai!", do mesmo modo e pessoa. Associando isso a outras formas como e ku manda (lit. "é assim que manda"), que quer dizer "é por isso que", podemos concluir que os verbos vêm do imperativo porque os subordinados estavam sempre recebendo ordens. A forma do verbo crioulo foi determinada pelo modo como a língua foi recebida. Em suma, foi a eic específica que determinou qual das inúmeras formas do verbo português entraria no crioulo.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Ecologia da Interação Comunicativa I

Como foi largamente defendido por Mikhail Bakhtin, a função básica da língua é a comunicação. Não há comunicação sem língua nem língua que não seja usada em atos de interação comunicativa. A comunicação é tão fundamental que há até mesmo graus de entendimento, de acordo com o contexto dos comunicantes. Entre dois brasileiros, marido e mulher, às vezes nem é necessário o uso de palavras para que se entendam, por conviverem quotidianamente e, portanto, compartilharem muitas experiências. Entre duas pessoas de uma mesma cidade ainda há muitas experiências compartilhadas, mas em menor grau do que as que há entre cônjuges. Entre um brasileiro do Oiapoque e outro do Chuí ainda há uma grande quantidade de informações compartilhadas, mas em grau menor do que a que há entre os que moram numa mesma cidade. Entre brasileiros e portugueses, há menos informação compartilhada ainda, embora compartilhem um sistema lingüístico e algo de história. Por fim, entre um brasileiro e um chinês que tenha aprendido o português em seu país, a comunicação será bem menos eficaz do que em qualquer um dos casos anteriores.
O importante é que mesmo entre o chinês e o brasileiro algum tipo de comunicação se dá porque compartilham o sistema abstrato de língua, o que viabiliza a decodificação de uma mensagem enviada por um deles ao outro, sistema em geral adquirido via gramática normativa e dicionário (o Aurélio, p. ex.). Mas, quando saímos do âmbito do social, notamos que há mais coisas compartilhadas. Por exemplo, os portugueses e ameríndios que se viram frente a frente em Porto Seguro em 1500 não tinham nada em comum do ponto de vista cultural, embora um precário entendimento tenha havido, como se vê no relato de Caminha. Trata-se do nível biológico: ambos eram terráqueos, animais e humanos, portanto, compartilhavam as condições de vida na face da Terra. Daí terem se entendido até certo ponto mediante o uso de gestos e atitudes.
Ainda no domínio do biológico temos a fotossíntese, a fecundação e outros tipos de interação. Seriam também exemplos de "comunicação biológica". Por fim, temos os processos de sedimentação, de formação de rochas, de atração e repulsão entre os corpos, além da "comunicação química", "bioquímica" e semelhantes. O que há de comum a todos esses casos é a interação. O que mostra que ela é universal, e um universal muito mais interessante do que os "universais" da gramática gerativa.
Por precisão terminológica, usarei o termo interlocução (ou diálogo) para a interação que pressupõe um código. No caso, o código é a língua (L), que viabiliza o entendimento da mensagem formulada pelo falante (F) e enviada ao ouvinte (O), no processo de interlocução, que é comunicação humana, ou comunicação propriamente dita. A mensagem geralmente está contida em um enunciado. Para a interação que se deu entre portugueses e ameríndios bem como a que se dá entre a criança e os pais nos momentos iniciais de aquisição de língua, eu emprego o termo contágio sugerido por Schaff (1968: 127). Por esse termo, ele entende o tipo de interação que "transfere conhecimento de estados emocionais de um indivíduo para outro, ou fornece informação sobre uma certa situação hic et nunc". Os exemplos que ele dá são a "comunicação" entre abelhas e entre formigas. Como se vê, interlocução é interação no nível do superorgânico, e contágio é interação no nível do orgânico, pelo menos eu seus estágios mais evoluídos. Ficou faltando a interação que se dá entre elementos químicos e físicos, ou seja, no nível do inorgânico. A esse tipo de interação pode-se dar o nome de intertração, que compreende tanto a atração quanto a repulsão entre os corpos. Aparentemente, interação intertrativa se dá não só no reino mineral, mas provavelmente também nos momentos iniciais do nível biológico. Um exemplo do primeiro seria o composto que consta da combinação de átomos ou de íons com carga oposta, de dois ou mais elementos, mantidos juntos pela força de atração, como o ato de fecundação, que é uma troca bioquímica.
Partindo do pressuposto de que as únicas coisas eternas e incriadas, ou seja universais, são a matéria e a energia (movimento), como já sugerira Heráclito e Engels, podemos ver na figura 1 que a interação típica do nível do inorgânico é a intertração, ou seja, a atração e a repulsão (1). A interação típica do nível do orgânico animal (biológico) é o contágio (3). A interação típica do nível do superorgânico (social) é a interlocução (5). O contágio e a interlocução são ambos comunicação: contágio é comunicação animal, ou seja, Verhalten (comportamento) como se diz em alemão; interlocução é comunicação humana, ou seja, Handlung (ação social), também do alemão. Mas, a intertração pode dar-se também no orgânico (2), como na fecundação do óvulo pelo espermatozóide, e o contágio pode ocorrer também no nível humano (4), isto é, os comportamentos animais subsistem no ser humano. Só a interlocução (diálogo) é típica e específica do ser humano, pois pressupõe um código socialmente sancionado. Como base para que intertração, contágio e interlocução se efetivem, tem que haver a comunhão, que será examinada logo em seguida.
Tanto "contágio" quanto "intertração" foram usados por falta de termos mais adequados. Em vez de "intertração", pensei em usar "síncrise" 'comparação de opostos', da retórica antiga. O termo vem do grego sýnkrisis 'combinação, comparação', via latim, e é composto de syn 'com' + kri (de krinein 'separar') + sis '-ise'. Ele contém a idéia de junção e a de separação, o que explicaria os movimentos de atração e repulsão. Porém, decidi manter "intertração" a fim de ter três termos latinos. Quanto ao termo "contágio", é interessante porque contém o prefixo latino "con-", presente também em "comunicação" e "comunhão".
Sebeok tem sido um pioneiro nessa visão abrangente de interação, embora ele use o termo comunicação para todos os casos de interação (Sebeok, 1973; 2002).
O processo de aquição da língua pela criança se inicia intertrativamente (ou sincriticamente), já antes do nascimento, ou seja, ainda no útero da mãe. A partir do nascimento, a interação evolui para o contágio. Com a idade de 0;10,29, aproximadamente, inicia-se a fase da interlocução propriamente dita, ou seja, quando a criança profere espontaneamente seu primeiro enunciado de uma palavra, o que em geral permite um pequeno diálogo com o adulto.
Para que a interação se dê em qualquer um dos três níveis (intertração, contágio, interlocução), é necessário que os interagentes entrem em comunhão. Comunhão é uma espécie de preparação das condições para que a interação ocorra. Em cada nível, ela terá características diferentes.
Quem propôs o conceito foi Malinowski (1972: 312), sob o nome de comunhão fática. Para ele, "...não é preciso ou, talvez, nem deva até haver coisa alguma a comunicar. Desde que existam palavras para trocar, a comunhão fática leva selvagens e civilizados, por igual, para uma agradável atmosfera de intercurso polido, social." O conceito foi retomado por Jakobson no contexto de suas seis funções da linguagem. Para ele, a função fática "pode ser evidenciada por uma troca profusa de fórmulas ritualizadas, por diálogos inteiros cujo único propósito é prolongar a comunicação" (Jakobson, 1969: 126). Ele afirma ainda que essa função ocorre tipicamente também em aves falantes, de modo que "a função fática é a única que compartilham com os seres humanos". Por fim, ele diz que a interação fática é a primeira da criança. Para o primeiro autor, a interação comunial pressupõe uma língua, embora para o segundo nem sempre isso seja necessário.
O crioulista William Samarin também faz uso de um conceito semelhante, ou seja, simbiose ou confraternização ("fraternization", referindo-se ao francês "fraternisation"). De acordo com ele, "algum tipo de simbiose é necessário para que um pidgin se desenvolva" em uma situação de contato de línguas. Entre as partes contatantes, havia "todo um conjunto de relações que faziam com que a comunicação se tornasse necessária ou desejável" (Samarin, 1988: 160-161). O fato é que o termo simbiose poderia perfeitamente ser usado no lugar de comunhão. Não obstante isso, prefiro comunhão devido a suas ligações óbvias com comunicação.
Quando recuperamos o sentido religioso original da palavra, verificamos que a existência de um código comum não é necessária para que haja comunhão. O mais importante é o próprio compartilhamento, não importa de quê. Tanto que alguns dicionários definem comunhão como designando "compartilhamento de sentimentos e pensamentos". Nesse sentido, comunhão é um conceito ecológico mais amplo. Todos os seres animais tendem a ter atos de comunhão, e não apenas as aves, como sugeriu Jakobson, para proteção, reprodução, lazer etc. Veja-se o caso das bactérias. Talvez mesmo os vegetais interajam comunialmente. Pode ser que até mesmo a força de coesão seja uma espécie de comunhão no reino mineral. Sem aprofundar este tema, minha proposta é de que comunhão não pressupõe uma língua comum. Pelo contrário, é a comunicação e, por extensão a língua, que pressupõem algum tipo de comunhão prévia. Como disse Schaff (1968: 159) "... o processo de comunicação só ocorre no mundo animal quando envolve o processo de cooperação, processo de ação social sui generis". Por "cooperação", entenda-se atos de comunhão.
No modelo de Jakobson, a função fática é a abertura, manutenção e fechamento do canal de comunicação. No compartilhamento de sentimentos entre indivíduos que se vêem juntos, a comunhão tem o mesmo papel, ou seja, o de preparar o cenário em que a comunicação pode se dar. Isso implica os momentos de encetar, manter e encerrar a comunicação.
No caso dos seres vivos, e os humanos não são exceção, sempre que se vêem juntos, interagem de alguma forma, mesmo que não tenham nenhum código comum. Se essa interação for de hostilidade (simbiose desarmônica), poderá haver lutas, redundando até mesmo na eliminação do outro, ou de todos. Nesse caso, o agrupamento heteróclito acaba se desfazendo. Se a interação for de solidariedade (simbiose harmônica), os seres poderão passar a constituir um todo relativamente homogêneo, uma comunidade, como se pode ver em Couto (1999, 2002:180). No nível do orgânico, ocorre algo semelhante. Um exemplo seria a fertilização do óvulo que dá lugar ao feto. No nível do inorgânico, temos a força de atração e a de repulsão. Se prevalecer a segunda, as partículas (os corpos) se repelirão; se prevalecer a primeira, poderão se aderir umas às outras, formando um novo corpo.
Alguns poucos autores salientam a importância do espaço nesse contexto. Assim, quando indivíduos, mesmo de culturas diferentes, se vêem juntos em um mesmo espaço, ou seja, entram em contato, por uma questão de sobrevivência acabam entrando em comunhão, como a que se viu em Porto Seguro em 1500 entre portugueses e ameríndios. A partir dessa comunhão, inevitavelmente surgirão Tentativas Individuais de Comunicação (TIC). Caso a convivência continue, essas tic acabam levando à emergência de uma comunidade e, conseqüentemente, à emergência de uma linguagem comum, como começou a ocorrer nos primeiros núcleos de colonização. Esse processo está desenvolvido com relativo detalhe no capítulo "Ecologia da Evolução Lingüística".
Numa situação de contato de povos e línguas diferentes (contato interétnico) é claramente a solidariedade (comunhão) que começa a preparar o terreno para o surgimento de uma comunidade, como sugeriu Samarin. Nos primeiros momentos do encontro, tem-se apenas uma agregação cinética, como as pessoas no elevador, que nada têm em comum. Outro tipo seria a agregação tropista, como as pessoas debaixo de uma marquis para se proteger da chuva. Em nenhum desses casos há comunhão. No entanto, quando a convivência no espaço perdura, todos os seres animais tendem a se agregar e, uma vez agregados, precisam interagir. O modo mais comum de interação é a comunhão, ou seja, o estar satisfeito com o simples estar junto. Se há alguma coisa para comunicar, isso é muito bom e bem vindo. Se não houver, não importa. O que importa é a solidariedade, a predisposição para a convivência. No caso da criança adquirindo a língua de seu meio, isso se aplica in totum.
Em síntese, no reino do inorgânico, a comunhão consiste na co-presença espácio-temporal de partículas ou elementos, que se atrairão. Nesse caso, elas se aderirão uma à outra, formando um todo complexo. A sedimentação que dá lugar a rochas seria um exemplo. No reino do orgânico, ou biológico, a co-presença espácio-temporal pode provocar um contágio, que pode levar, entre outras coisas, à formação de um novo ser, como na fusão de uma célula haplóide (espermatozóide) com a do sexo oposto (óvulo) durante a fecundação para formar um zigoto. No reino do superorgânico, a co-presença leva a uma solidariedade (comunhão), inclusive por uma questão de sobrevivência, que é o primeiro passo para o surgimento de uma comunidade e, conseqüentemente, de uma linguagem. A última, por sua vez, faculta a comunicação interlocucional.
Vejamos agora a estrutura do Ato de Interação Comunicativa, que constitui a Ecologia da Interação Comunicativa (EIC). O modelo clássico de comunicação é o que se vê na figura 1, segundo o qual, para que uma mensagem, ou enunciado (E), enviada por um falante (F) a um ouvinte (O), seja entendida, tem que estar formulada em uma linguagem/língua (L) que F e O compartilhem.
O modelo da figura 2 tem sido considerado como muito estático. Eu acho que isso se deve ao fato de ele estar incompleto. Seguindo seus formuladores originais, faltam a fonte (fo) e o destino (de) da mensagem, e eu acrescentaria o tema, assunto ou contexto (c) da informação, como se pode ver na figura 3.
Esses dados adicionais são importantes, pois, entre outras coisas, permitem entender alguns dêiticos pronominais. Por exemplo, F sozinho é eu e fo sozinho é "ele1" (o "ele" que está comigo); f+fo equivale "nós" exclusivo; f+o dá o "nós" inclusivo (poderia ser também (fo+f)+o ou (fo+f)+o+de. Por outro lado, O sozinho é "tu"; de sozinho é "ele2" (o "ele' que está contigo); o+ de é "vós" exclusivo. o+de+fo é o "vós" inclusivo (inclui quem está com f). Existe ainda a possibilidade (fo+f)+e+(o+de) que equivale ao "nós" geral, ou seja, todos que estão envolvidos no Ato de Interação Comunicativa e até a comunidade inteira. Por fim, temos o lado A do modelo, que remete àquilo de que se fala que, nesse caso, dá lugar aos dêiticos espaciais e temporais, como "este", "esse", "aquele", os objetos e coisas presentes de que se fala, o "ele3", etc. Partindo dessa visão holística do modelo, nota-se que ele não é tão estático assim, mas um todo sistêmico cujas partes estão em constante interação.
Para dar apenas mais um exemplo de como esse modelo pode funcionar, vejamos a o caso de um prefeito monolíngüe de uma cidade do interior do Brasil que quer se comunicar com um prefeito, também monolíngüe, de uma cidade do interior da China, sendo que cada um tem um assessor que fala inglês. Primeiro, o brasileiro informa a seu assessor, em português, o que quer dizer ao prefeito chinês. Esse assessor passa a informação ao assessor do prefeito chinês, em inglês. Este último, por seu turno, passa a informação em chinês ao prefeito chinês. Mas, a interação pode continuar, com uma inversão da direção da mensagem, dando início a um movimento cíclico. Assim, vejamos que tipos de mensagens transitam em uma direção e outra.
Partindo do pressuposto de que a função fundamental e prototípica da língua é a de servir de base para o entendimento na interação face-a-face, ou seja, para influenciar o outro, a interlocução consta basicamente de uma solicitação, um enunciado de emissor ou falante, que deve ter uma satisfação do receptor ou ouvinte, mediante uma resposta ("enunciado de receptor"), ou um comportamento. O conjunto solicitação-satisfação constitui a célula da comunicação. Trata-se, portanto, do complexo "enunciado de F + enunciado de O", como representado na figura 1.
F1--------------O1
|                         |
O2--------------F2
Fig. 1

Só que, ouvinte não fala; ouvinte ouve. Assim, no momento em que O, como O1, reage à solicitação de F, na qualidade de F1, transforma-se, por sua vez, em F, no caso, F2, momento em que quem era falante (F1) se transforma em ouvinte, no caso, O2. Com isso, fecha-se o circuito, completando a célula da comunicação. Agora, falta examinar a natureza de cada solicitação, bem como de cada satisfação. Sabemos que podemos influenciar o outro mediante (i) ordem, (ii) pergunta e (iii) resposta a essa pergunta, ou seja, informação. Pode-se também fazer (iv) exclamações e (v) chamar a atenção de quem está próximo (vocativo). Cada um desses modos de atuar sobre o outro constitui um tipo de enunciado interlocucional, ou melhor, um AIC. Na verdade, a interlocução pode continuar, ou seja, o O2 da figura 1 pode transformar-se em F3, e o F2 da mesma figura transformar-se em O3 e assim sucessivamente, como sugerido na figura 2, que termina em reticências para deixar claro que o diálogo pode continuar.

F1-------------------O1 (Quanto custa isto?)
|                                 |
O2------------------F2 (Cinco reais)
|                                 |
F3------------------O3 (É muito caro!)
|                                 |
.............................
Fig. 2

Para entender esse fluxo dialógico, partamos da exclamação que uma freguesa faz diante de uma plaquinha indicando o preço de um produto na feira. Ela pode dizer: "Isto é muito caro!" De meu conhecimento, nunca houve uma análise da exclamação desta perspectiva. No entanto, quando a examinamos em profundidade, verificamos que ela surgiu diante da informação do preço (Cinco reais) que, por seu turno, foi uma informação antecipada à pergunta que qualquer freguês faria, ou seja, "Quanto custa isto?"
A solicitação-pergunta implícita, que o feirante previu que a freguesa faria, é um enunciado de F1 (quanto custa isto?) da freguesa (F1) para o feirante (O1). Quando este (O1) confeccionou a plaquinha e a afixou no produto, ter-se-ia transformado em F2, uma vez que deu uma satisfação-informação, sob a forma de uma plaquinha que contém a oração declarativa "[Isto custa] cinco reais". Nesse momento, a freguesa passa a ser receptora da mensagem do preço, ou seja, O2. Por fim, ela pode reagir, dizendo "Isto é muito caro!", momento em que se transforma em F3, e o feirante em O2. E assim por diante.
Eu gostaria de dar uma outra maneira de se encarar o fluxo interlocucional, partindo da eic que se dá no uso das adivinhas no crioulo português da Guiné-Bissau. Uma adivinha muito popular é cabás intchi os/boca cu dinti (uma cabaça cheia de ossos/a boca e os dentes). Na figura 3, temos o fluxo interlocucional que se dá nesse caso.

F1------------------O1  (dibinha, dibinha!)
|                               |
O2------------------F2 (anuência: dibinha certu)
|                               |
F3-----------------O3 (cabás intchi os)
|                               |
O4----------------F4 (resposta: boca cu dinti)
|                               |
F5------------------O5 (confirmação do acerto ou não)
congraçamento, confraternização, risadas
(comunhão)
Fig. 3

Primeiro, o perito em adivinhas propõe o desafio dibinha, dibinha, aproximadamente o nosso "O que é, o que é?" Nesse momento, ele é F1 e os ouvintes (O1). Para que a interação tenha continuidade, é necessário que os ouvintes reajam, transformando-se em F2, dizendo dibinha certu (= adivinha certo = está bem). Tendo ouvido isto como O2, lança o desafio, já como F3, cabás intchi os (uma cabaça cheia de ossos), que a audiência, como O3, tem que interpretar. Ao fazê-lo, a audiência (ou alguém dela) se transforma em F4 fornecendo a resposta boca cu dinti (a boca e os dentes), para o perito, que a recebe como O4. Este, por fim, e agora transformado em F5, ratifica ou retifica a resposta da audiência, que já é O5. Nesse momento, dá-se um congraçamento, uma confraternização, plenas de risadas. É um momento de comunhão, tomando-se o termo no sentido que foi apresentado acima.
Até aqui comentei a solicitação-pergunta, a satisfação-informação (oração declarativa) e a exclamação. Falta ainda, pelo menos, o vocativo que, aparentemente, não tem sido estudado da presente perspectiva. Ao que tudo indica, ele é uma pré-ordem, como em "Joãozinho, feche a porta!", dito pela mãe. Como a solicitação-ordem é dirigida diretamente a o, na interação face-a-face, não é necessário dizer "Você feche a porta." A co-presença de o e o já indica que a ação deve ser praticada por o. Dessa perspectiva, o vocativo parece ser uma espécie de substituto do sujeito. Em muitos casos, ele sozinho faz as vezes da ordem. A mãe poderia ter dito simplesmente "Joãozinho!" e ele saberia que ela estava mandando fechar a porta. Mesmo assim, a ordem continuaria existindo subjacentemente, apenas não foi manifestada.
Não é apenas a função de pré-ordem que o vocativo exerce. Ele pode ser também uma pré-pergunta, como o "oi" de "oi, tudo bem?" Outra possibilidade é ele ser uma pré-informação. Seria o caso de a mãe dizer para a filha: "Aninha, tá na hora do banho." Em latim o vocativo é usado para a exclamação, como na famosa expressão O tempora! O mores! (oh tempos, oh costumes!), de Cícero, e para o chamamento, como em Quousque tandem abutere, Catilina, patientia nostra? 'Catilina, até quando abusarás de nossa paciência?', também de Cícero. Parece que o vocativo pode substituir qualquer um dos enunciados que introduz, ou seja, a ordem, a pergunta, a declaração-informação. Uma exceção talvez seja a exclamação.
Aparentemente, a saudação seria um outro tipo de solicitação (solicitação-saudação), para iniciar e encerrar a comunhão. O início da comunhão seria o cumprimento, como no exemplo "oi, tudo bem?" O término do processo de comunhão seria a despedida. Interessantemente, o término parece ser mais primordial do que o chamamento para o início da comunhão. Tanto que geralmente a criança começa a reagir positivamente à expressão "tchau" a partir dos oito meses de idade proferindo-a em contexto adequado.
De outra perspectiva, a solicitação-ordem deve ser o enunciado mais primitivo, não requerendo uma satisfação verbal. Para se dizer "pare aí" ou "vem aqui!", não é nem mesmo necessário usar palavras; os gestos bastam. Tanto que os próprios animais fazem solicitação-ordem entre si. Nós podemos dar ordem para que uma pessoa se afaste de nós simplesmente empurrando-a, como fazem os demais animais. Além disso, sabemos que a comunicação homem-animal, que se dá nas fazendas do interior, consta de cinco tipos de "enunciados" (chamamento, afugentamento, acicate, parar, segurar [o carro]), mas todos eles se reduzem à ordem, como tentei mostrar em Couto (1995). Mesmo na comunicação humano-humano, a forma dos verbos que codifica a solicitação-ordem é o imperativo.
A pergunta e a resposta são mais elaboradas. Elas constituem elos da cadeia dialógica que só podem manifestar-se verbalmente. No caso do enunciado-informação, ou satisfação-informação, realizada por uma oração declarativa (de F2) pode haver também a informação-negação. Ainda não está claro se efetivamente o enunciado negativo é de F1 ou F2. Em prol de sua interpretação como enunciado de F2, temos o fato de que quando alguém diz "não tem ninguém lá dentro", referindo-se a uma casa fechada, está pressupondo uma pergunta sobre se há alguém lá dentro. O fato é que tanto o enunciado-afirmação quanto o enunciado-negação asseveram algo. Só que o segundo nega a verdade do primeiro, afirmando sua negação. Simbolizando a afirmação como P, temos que sua negação é ~P. Isso significa que, do ponto de vista da lógica, a negação pressupõe a afirmação. Entendido dessa forma, o enunciado-negação não seria de F2, uma vez que o enunciado-afirmação já o é. Há mais complicadores. Quando A pergunta a B "você foi ao cinema?" e B responde "não", esse "não" na verdade equivale a "eu não fui ao cinema."
Outro fato interessante é que praticamente em todos os crioulos do mundo a solicitação-pergunta é indicada pela simples elevação da voz, pela curva entonacional. Ademais, em muitas línguas não crioulas essa é a estratégia usada para a pergunta. Até mesmo em línguas como inglês, que tem o morfema interrogativo do, como em do you speak English?, pode-se dizer também simplesmente speak English? Também isso tem a ver com a Ecologia da Interação Comunicativa. Como falante e ouvinte estão um de frente para o outro, numa interação face-a-face, terminar o enunciado de modo literalmente suspenso, ou seja, com a voz se elevando, requer uma complementação, que é o que requer a solicitação-pergunta. Isso parece ser mais um dos universais da comunicação, se é que vamos falar em universais na língua.
Ainda no que tange ao enunciado-informação, existe o problema de alguns animais darem informação aos pares. Por exemplo, a famosa dança das abelhas tem por objetivo informar à colméia que em determinada direção há fonte de néctar para se fazer mel. Parece que a informação inclui até mesmo se há uma grande quantidade de material ou não. Com isso, esse enunciado seria também primitivo, porém não tão primitivo quanto a ordem, que existe na maioria dos animais, e pode ser feita apenas pelo contato físico. Informações como a das abelhas não parece ser comum em muitas outras espécies. Tudo isso precisa ser investigado mais pormenorizadamente.
Repetindo, a língua se forma e se transforma, ou seja, nasce, vive e definha em função dos Atos de Interação Comunicativa, ou da ausência deles. Dito de outro modo, por um lado, ela só pode nascer na interação, ou seja, das pessoas tentando se comunicar. Por outro lado, nos próprios atos de interação comunicativa concretos, a língua se altera para se adaptar a novas situações. Por fim, se as pessoas começarem a deixar de usá-la para se comunicarem entre si, por exemplo por estarem adquirindo outra língua, ela entra em obsolescência, podendo desaparecer.
Os aic são o corpo e a alma da língua. Poderíamos até mesmo compará-los ao holograma, uma vez que eles contêm em si, em miniatura, tudo que compõe a língua. O melhor lugar para se depreender a língua é na Ecologia da Interação Comunicativa. A aquisição de língua pela criança, a aprendizagem de L2 pelo adulto e a própria filogênese da linguagem começaram por Atos de Interação Comunicativa, que no início eram meras Tentativas de Interação Comunicativa. Como se pode ver no capítulo "Ecologia da Evolução Lingüística", a formação de novas línguas com genes (traços) de línguas pré-existentes passa pelo mesmo processo.
Retomemos a questão da aquisição da língua pela criança. Nas palavras de Bakhtin, "... a língua não se transmite; ela dura e perdura sob a forma de um processo evolutivo contínuo. Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada; eles penetram na corrente da comunicação verbal; ou melhor, somente quando mergulham nessa corrente é que sua consciência desperta e começa a operar... Os sujeitos não 'adquirem' sua língua materna; é nela e por meio dela que ocorre o primeiro despertar da consciência." Em nota de rodapé o autor acrescenta: "O processo pelo qual a criança assimila sua língua materna é um processo de integração progressiva da criança na comunicação verbal. À medida que essa integração se realiza, sua consciência é formada e adquire seu conteúdo" (Bakhtin, 1981: 108).
Tudo isso mostra que o famigerado papel ativo do aprendiz defendido pela gramática gerativa talvez não seja tão ativo assim. Na verdade, o de que o aprendiz precisa é entrar em comunhão com os que constituem a comunidade em que começa a viver a fim de entrar no fluxo de comunicação vigente nela. Aprender uma língua é aprender a comunicar-se, é adaptar-se. Tanto que o próprio Chomsky afirma que a aprendizagem de língua é "algo que acontece com a criança, não [algo] que a criança faz" (1997: 5). Por quê? Simplesmente porque, mesmo que não queira, pelo simples fato de ter nascido na comunidade x e não na comunidade y, aprenderá a língua da comunidade x. De certa forma, a aquisição da primeira língua pela criança se dá mediante sua absorção pelo fluxo interacional da comunidade em que se desenvolve. Não há como não aprender a língua nessa situação.
Nesse processo, o espaço é determinante. Sempre que pessoas se vêem juntas interagem. Uma das interações mais comum é a lingüística. Só que, para haver aic eficaz é necessário que haja um sistema prévio. Se ele não existe, cria-se um. O fato é que sem a co-presença no espaço não haveria aic, a despeito de atualmente a tecnologia permitir interação à distância. No entanto, esse tipo de interação é derivado, é secundário. A interação prototípica é a que se dá face a face. Como o assunto deste livro é o contato de línguas, gostaria de acrescentar que, na verdade, a comunicação é um tipo de contato, mesmo que intralingüístico, ou seja, interdialetal ou interidioletal. O aic é um contato em nível microscópico, intralingüístico.
Tudo que for dito nos capítulos subseqüentes será resultado de algum aspecto dos aic aqui comentados. Tudo na língua passa pela Ecologia da Interação Comunicativa. Vejamos, para terminar, apenas um exemplo do crioulo português da Guiné-Bissau. Tradicionalmente se tem dito que os verbos dessa língua vêm da forma não-marcada da terceira pessoa do singular do presente do indicativo. Eu, porém, acho que grande parte deles vêm é da forma do imperativo. Dois exemplos seriam bin (vir), que teria provindo da forma "vem!", segunda pessoa do singular, imperativo, e bai (ir), originário de "vai!", do mesmo modo e pessoa. Associando isso a outras formas como e ku manda (lit. "é assim que manda"), que quer dizer "é por isso que", podemos concluir que os verbos vêm do imperativo porque os subordinados estavam sempre recebendo ordens. A forma do verbo crioulo foi determinada pelo modo como a língua foi recebida. Em suma, foi a eic específica que determinou qual das inúmeras formas do verbo português entraria no crioulo.

segunda-feira, 9 de março de 2009

MA Social da Língua

O ecossistema social da língua, ou seja, o todo formado pela língua e a sociedade, é o mais conspícuo dos três. A tal ponto que Haugen (1972: 325) chegou a afirmar que "o verdadeiro meio ambiente da língua é a sociedade que a usa como um de seus códigos." Na verdade, a maioria dos ecolinguistas atuais segue essa linha, como é o caso de Fill (1993), Mühlhäusler (2003), Calvet (1999), bem como da maioria dos colaboradores das antologias publicadas até hoje (cf. Fill & Mühlhäusler, 2001; Fill, Penz, Trampe, 2002). Os trabalhos que não tratam desse MA, em geral se dedicam a questões epistemológicas da disciplina. Com isso não estou menosprezando esses trabalhos, mas apenas salientando a tendência geral nos estudos ecolinguísticos. Só para repetir, a sociedade, ou seja, os membros de P organizados socialmente, constituem o MA social da língua.
Entre os assuntos que têm sido estudados sob essa rubrica, poderíamos mencionar o discurso ambiental, o discurso dos poluidores que querem passar-se por ambientalmente corretos, o antropocentrismo, o etnocentrismo, o androcentrismo (machismo), bem como as idéias de desenvolvimento e o correlato de grandeza, de acordo com o qual o bom é crescer, tornar-se "grande." Nas sociedades ocidentais, não é bom ser pequeno, é preciso "desenvolver", a qualquer custo (para o MA). Mas, os ecolinguistas dessa orientação defendem também a diversidade linguística (linguodiversidade), juntamente com a diversidade biológica (biodiversidade). É o caso das línguas minoritárias, dos dialetos e outras variedades linguísticas. Enfim, eles defendem a diversidade, no sentido mais amplo do termo.
Como está implícito em Haugen, os assuntos tradicionalmente tratados nesse contexto antes da emergência da ecolinguística são objeto da sociolinguística, tais como o multilinguismo (que inclui o bilinguismo), a variação linguística e o contato de línguas. Os estados que têm muitas línguas em seu território precisam decidir (e impor) uma língua estatal ou oficial. Isso é um dos tópicos do planejamento linguístico, ao qual o próprio Haugen dedicou vários estudos.
Experiências individuais que ficassem restritas ao indivíduo, ou seja, que não fossem compartilhadas com outros indivíduos da comunidade, desapareceriam. Individualmente, elas poderiam até persistir por muitos anos, mas não seriam fenômenos de L. Tanto que, assim que o indivíduo morre, essas experiências morrem com ele.
É o ecossistema social da língua, juntamente com o respectivo MA, que mais aproxima a ecolinguística e a análise do discurso. Como já foi mencionado acima, muitas questões estudadas pela última são-no também pela primeira. Nas duas seções seguintes vou discutir duas delas, ou seja, a linguagem preconceituosa e a linguagem dos poluidores e devastadores do meio ambiente que querem se passar por ambientalmente corretos.

Referências
Calvet, Louis-Jean. 1999. Pour une écologie des langues du monde. Paris: Plon.
Fill, Alwin & Peter Mühlhäusler (orgs.) 2001. The ecolinguistics reader. Londres: Continuum.
_______, Hermine Penz & Wilhelm Trampe (orgs.) 2002. Colourful green ideas. Bern: Peter Lang.
Mühlhäusler, Peter.. 2003. Language of environment - Environment of language: A course in ecolinguistics. Londres: Battlebridge.

MA Mental da Língua

Apesar do nome "meio ambiente mental da língua", a mente é apenas um dos constituintes desse MA de L. Na verdade, ele compreende o sistema nervoso central e o periférico. O primeiro é composto pelo encéfalo e a medula espinhal ou raquidiana. O encéfalo é formado pelo cérebro, o cerebelo, o tálamo, o hipotálamo e o tronco encefálico. O cérebro, para o que aqui interessa, se subdivide em hemisfério direito e hemisfério esquerdo. O sistema nervoso periférico, constituído pelos nervos e gânglios nervosos, também se inter-liga ao cérebro ou ao encéfalo em geral, pois é ele que estabelece comunicação do indivíduo com o MA natural. Assim sendo, talvez o melhor termo para esse MA da língua fosse "MA cerebral", "MA encefálico" ou "MA nervoso." No entanto, temos também a mente. Embora lexicólogos, psicólogos e filósofos não tenham chegado a um acordo sobre como defini-la, emprego-a no sentido de "funções cerebrais", que emergem da neurologia do cérebro, sem entrar nos detalhes da sua conceituação. Como está associada a "mente", achei melhor manter a denominação "MA mental", inclusive porque ele já tem uma longa tradição na gramática gerativa. Esse MA intermedeia o MA natural e o MA social da língua, no sentido de que, da perspectiva do cérebro, ele faz parte do MA natural e, da perspectiva da mente, de certa forma se direciona para o MA social (ou psicossocial).
O MA mental da língua é um dos mais difíceis de se estudar, quando não pelo fato de requerer aparelhagem sofisticada. Ele é o locus imediato da língua. Vem sendo estudado parcelarmente por ciências como a neurolinguística e outras neurociências, pela psicolinguística, pela biolinguística e pelo conexionismo, entre outras ciências. A neurolinguística, por exemplo, investiga processos de aquisição (formação), processamento e desestruturação da linguagem.
Infelizmente, ainda sabemos muito pouco sobre o modo como a língua é formada, armazenada, processada e transformada no cérebro. Até hoje ainda não se chegou a uma compreensão plena de quais são os mecanismos cerebrais que estão envolvidos, por exemplo, no uso dos sons, do léxico, da morfologia, da sintaxe e outros aspectos da língua. No entanto, alguma coisa valiosa já sabemos. Uma delas diz respeito à localização dos processos linguísticos, a lateralização, descoberta por Pierre Broca (1824-1880). Ele foi o primeiro investigador a constatar a dominância do hemisfério esquerdo na articulação da língua. Por "dominância" deve-se entender que os processos linguísticos se dão preferencial e majoritariamente nesse hemisfério, o que não significa que o hemisfério esquerdo também não seja ativado de alguma forma. Talvez pelo fato de que, como constatara ainda Broca, produzir e entender linguagem envolvem tarefas cognitivas diferentes. Carl Wernicke (1848-1905) concluiu que as imagens sonoras estavam localizadas no lóbulo temporal esquerdo, posterior ao córtex auditivo primário.
As pesquisas de Broca foram feitas com pacientes afásicos. Nos anos sessenta, encetaram-se estudos do comportamento linguístico de adultos normais. Esses estudos confirmaram em grande parte as suas constatações. Encontraram-se novas evidências a favor da especialização sinistro-lateral. O processamento de sinais da fala se dá prioritariamente no hemisfério esquerdo, ao passo que o processamento dos demais sinais se dá prioritariamente no hemisfério direito. De qualquer forma, há situações em que as coisas se complicam. É o caso dos bilíngues. Aqueles que aprenderam duas línguas no começo de suas vidas ativam regiões do cérebro que se interseccionam, quando processam as duas línguas. Aqueles que aprenderam a segunda língua mais tarde ativam duas regiões distintas do cérebro para as duas, uma região para cada língua (cf. Paradis, 1980).
Investigações individuais têm levado a conhecimentos parcelares. Como diz Levelt (2000: 844), "as áreas do lóbulo temporal esquerdo adjacentes ao córtex auditivo primário se tornaram mais especializadas para o armazenamento dos códigos fonológicos. Várias áreas perisylvianas do hemisfério esquerdo (temporal, parietal, insular, frontal) estão ligadas às complexidades do processamento linguístico, indo da análise e síntese sintática, morfológica, fonológica até a fonética."
Os itens lexicais não estão armazenados em um único ponto. Como o cérebro é uma complexa rede de conexões entre neurônios, os conceitos associados a cada um desses itens é apenas um ponto (nó) em que uma série dessas conexões se sobrepõem. Como diz Lamb (2000: 177), "o nó para uma categoria conceptual parece ter conexões para/de um grande número de nós que representam suas propriedades, para/de outros nós conceptuais e para/de outros subsistemas. Por exemplo, conceitos para categorias de objetos visíveis têm conexões com nós da área visual; os de categorias de objetos auditivos, para/de nós da área auditiva e assim por diante. Tomando o conceito Cgato, por exemplo, temos conexões visuais relativas à aparência dos gatos, conexões auditivas para 'miau' e outros sons feitos pelo gato, conexões táteis para o que sentimos ao tocá-lo. Além disso, há conexões para outros conceitos que representam informação sobre gatos no sistema de informação da pessoa em cujo sistema essas conexões se formaram". Assim sendo, "o conhecimento de uma pessoa sobre gatos é representado no sistema de informação por uma pequena rede, que compreende centenas ou milhares de nós, incluindo uma rede visual para traços visuais, uma rede auditiva para o 'miau' e assim por diante, todas 'mantidas juntas' por um nó coordenador central, ao qual podemos dar o rótulo 'Cgato'." A linguística neurocognitiva desse autor desenvolveu um sistema gráfico para representar essas conexões, de modo quase icônico. Para uma priameira abordagem, pode-se consultar Couto (1982).
Se por um lado os dados resultantes da observação das lesões sugerem que é impossível delimitar uma área do cérebro inteiramente associada ao processamento sintático, por outro lado sabe-se que o córtex temporal anterior não tem sido associado a nenhuma função linguística. No entanto, as pesquisas têm demonstrado que ele estaria associado a déficits sintáticos. Conjuntos de áreas do córtex esquerdo perisylviano contribuem com o processamento sintático e alguns processos semânticos. Enfim, os dados indicam que o processamento sintático se baseia na ação conjunta de diferentes áreas do cérebro, cada uma com sua especialização relativa. É importante ressaltar também que as áreas envolvidas na compreensão da fala não são necessariamente as mesmas que são ativadas em sua produção.
Nos últimos anos, os estudos neurolinguísticos têm experimentado um notável avanço, facultado pela introdução de técnicas não-invasivas, mediante as quais se pode ver que partes do cérebro são ativadas durante a fala. Essas técnicas são basicamente de dois tipos: as hemodinâmicas e as eletromagnéticas. As hemodinâmicas são PET (positron emission tomography) e fMRI (functional magnetic resonance imaging), ambas de ótima resolução espacial mas de fraca resolução temporal. As técnicas eletromagnéticas são EEG (electroencefalografia) e MEG (magnetoencefalografia), de excelente resolução temporal, embora não tenham boa resolução espacial. Infelizmente, porém, ainda sabemos muito pouco sobre como os sinais eletrofisiológicos e os hemodinâmicos se inter-relacionam.
Quando ouvimos ou lemos uma palavra, nosso cérebro ativa não só a ela mas outras que podem ser associadas a ela. Nosso conhecimento da língua inclui não apenas as palavras reais mas também as potenciais, do mesmo modo que entendemos não apenas as frases que já ouvimos, mas todas as frases possíveis da língua, inclusive as sem sentido, como "Colorless green ideas sleep furiously", de Chomsky. Isso contribui para a autonomia relativa da linguagem vis-à-vis MA, após formada.
O que comentei aqui sobre o MA mental de L é apenas uma pequena amostra. Existem ainda inúmeras outras inter-relações em seu interior. Muitos outros fatos, tanto já conhecidos como ainda por ser descobertos, ficam de fora da discussão. Por exemplo, o número de palavras que cada indivíduo domina giraria em torno de 50.000 (França, 2005), embora esse número exato seja difícil de ser determinado. Entre as questões em aberto, teríamos a determinação do locus da gramática. Para Chomsky ela se localiza no MA mental; para Saussure, no MA social. Para a ecolinguística, tudo depende de como a encaramos: como "regras", é mental; como padrões de comportamento, social.

Referências
Couto, Hildo Honório do. 1982. Linguística e semiótica relacional. Brasília: Thesaurus Editora.
França, Aniela Improta. Neurolinguística. Ciência hoje, vol. 36(21) 2005, pp. 20-25.
Lamb, Sydney M. Neuro-cognitive structure in the interplay of language and thought. In: Pütz, Martin & Marjolijn H. Vespoor (orgs.) Explorations in linguistic relativity. Amsterdam: Benjamins, 2000, pp. 173-196.
Levelt, Willem J. M. Introduction. In: Gazzaniga, Michael S. (org.) The new cognitive neurosciences. Cambridge: The MIT Press, 2000, pp. 843-844.
Paradis, Michel. 1980. Language and thought in bilinguals. The sixth LACUS Forum. Columbia, S. C.: Hornbeam Press.