quarta-feira, 13 de abril de 2011

Sobre o conceito de diversidade

NOTA
Uma versão revista e ampliada deste ensaio foi publicada no livro As bordas da linguagem (Uberlândia: EDUFU, p. 155-180, 2011), organizado por Eliane Mara Silveira.


Introdução
O mundo capitalista cristão ocidental de modo geral defende a padronização, o que significa que não vê com bons olhos muita variação no mundo, muita diversidade. Nesse contexto, temos os gramáticos tradicionais e os normativistas em geral. Como agentes do estado que são, defendem os mesmos princípios. Para eles, língua é aquilo que está estatuído nas gramáticas normativas e nos dicionários. O que fugir daí é considerado errado. Tanto que consideram a linguagem do povo e, sobretudo, a do povo da zona rural como uma espécie de distorção da "boa linguagem". Eles se esquecem de que a linguagem rural é bem mais conservadora do que a linguagem urbana, o que significa que ela lembra mais o que existia no passado. Afora isso, ela é o resultado de uma adaptação às necessidades comunicativo-expressivas do novo meio em que se encontra.
Há também correntes da linguística que, implicitamente, defendem algo parecido. É o caso do estruturalismo, sobretudo o estruturalismo gerativista, que vê na língua algo como um organismo, herança saussuriana de Schleicher. Para a gramática gerativa, por exemplo, a língua é um sistema, porém, não um sistema induzido de atos de interação concretos que se dão no seio da comunidade de fala, mas uma hipóstase, algo tirado do ar, ou dado por Deus, como está no livro "Gênesis" da bíblia. Um dos poucos estruturalistas que escapam dessa visão de língua como um organismo hipostático é Eugenio Coseriu. Para ele, a única realidade linguística concreta é o falar, ou seja, os atos de interação comunicativa concretos. O sistema é um abstração, um construto forjado pelo linguista (Coseriu 1979). Para ele, como abstração esse sistema existe, e é interessante, pois são as regras abstraídas do falar concreto que garantem o entendimento entre as pessoas. Só não devemos pensar que ele é a língua. Essa atitude seria como tomar a parte da língua pelo todo.
A sociolinguística iniciada por William Labov avançou um pouco, uma vez que reconheceu que a língua apresenta variação em seu interior. Só que, também ele parte do sistema, e a variação se dá em seu interior, o que significa que a variação é sistemática. Esse e os demais modelos linguísticos estruturalistas têm dificuldade com a inovação. Isso é consequência do fato de verem na língua um sistema estático, imutável. Daí o considerar-se tudo que foge do sistema hipostasiado como "desvio", vale dizer, "erro".
Essa maneira de encarar o mundo e a língua recua até pelo menos Platão e Aristóteles. Mais próximo de nós ela ganhou novo alento na filosofia de René Descartes (1596-1650) e na mecânica de Isaac Newton (1643-1727). De acordo com essa visão de mundo, aqui estamos nós, lá está a natureza, para nos servir. Ela é um objeto que devemos explorar o máximo que pudermos, para o nosso "bem". Felizmente, no início do século XX essa maneira de encarar o mundo foi suplantada pela teoria da relatividade e pela mecânica quântica (Heisenberg 1981, Capra 2002, Bohm 2001). Segundo essa nova mundividência, tudo está relacionado a tudo. Nós estamos relacionados à natureza, ou melhor, nós somos parte da natureza. Uma consequência prática de tudo isso, da qual os físicos talvez não estivessem conscientes, embora a intuíssem, é que o que fizermos à natureza estamos fazendo a nós mesmos, fato que o físico Fritjof Capra reconhece explicitamente em quase todas a suas publicações. Por outras palavras, tudo que a física conseguiu a partir dessa data é compatível com a questão da diversidade. Mais explicitamente compatível com ela é a ecologia.
Ecologia
Bem antes do advento das duas teorias físicas no início do século passado, na biologia já se reconhecia o inter-relacionamento entre tudo no mundo. A obra de Charles Darwin (1809-1882) já aponta nessa direção. Em meados do século XIX surgiu um ramo mais abrangente da biologia, que via os organismos vivos no contexto geral em que viviam, ou seja, a ecologia. Os manuais de introdução à biologia e à própria ecologia a definem como sendo o ramo da biologia que estuda as interações entre os seres vivos e o meio onde vivem. Um pouco mais tarde, foi introduzido o conceito ecológico de ecossistema, que é o conjunto formado pela comunidade de organismos ou população, pelo biótopo, habitat ou território bem como pelas interações que se dão entre eles. Como veremos na seção seguinte, esse conceito (e o de seus componentes) é de fundamental importância para entendermos a linguagem na nova maneira de ver o mundo introduzida pela física.
Além do conceito de ecossistema, constituído pela população (P) de organismos vivos e suas inter-relações (I) no âmbito de seu meio ambiente ou território (T), a ecologia contém muitos outros conceitos que são úteis para o entendimento da nova visão de mundo, aí inclusa a linguagem. Com efeito, na própria ecologia se reconhece que a vitalidade de um ecossistema está diretamente relacionada à diversidade de organismos que houver em seu interior. Um ecossistema constituído de uns poucos seres vivos estará fadado a desaparecer. Um ecossistema rico quanto à diversidade deles é mais resistente, uma vez que, se desaparecer um (ou uns poucos) deles, outros podem assumir seu papel, de modo que o ecossistema como um todo se manterá, sua homeostase não será afetada de modo decisivo.
Não é só na ecologia biológica que a diversidade é importante. Na ecologia social e na filosófica também. Para não recuar muito no tempo, partamos da década de sessenta. O texto pioneiro de Rachel Carson (1962: 20) reconhecia que “a natureza introduziu uma grande variedade na paisagem, mas o homem sempre tendeu a simplificá-la”. Diante das visíveis mudanças no clima e no regime de chuvas, começou-se a perceber que uma das causas de tudo isso era a excessiva intervenção humana na natureza não humana, intervenção essa que geralmente tende a diminuir a diversidade de espécies existentes nos ecossistemas. Essa atitude se deve à visão "desenvolvimentista" segundo a qual as espécies que "não servem para nada", ou que são "perniciosas" podem e devem ser erradicadas. A consequência é o empobrecimento do ecossistema.
Em 1992, deu-se a ECO-92 no Rio de Janeiro, na qual o conceito de diversidade biológica, ou biodiversidade, ganhou mais visibilidade, inclusive na mídia. Pelo menos uma parcela da população de humanos começou a defender a integridade dos ecossistemas, contra o desaparecimento de espécies. Isso para o interesse dos próprios humanos, uma vez que se os ecossistemas se enfraquecerem a ponto de desaparecerem, nós seremos levados de roldão. A natureza não precisa dos humanos para continuar seu curso. Nós é que precisamos de sua higidez, que pressupõe um máximo de espécies para que os biomas terrestres continuem.
No contexto da ecologia filosófica (ecosofia), surgiu na década de setenta a ecologia profunda, formulada pelo filósofo norueguês Arne Naess (1912-2009). Todos os oito princípios que constituem a plataforma desse movimento se referem, implícita ou explicitamente, à ideia de diversidade. Vejamos os três primeiros, reproduzidos em Couto (2007: 37):
1. O bem-estar e o florescimento da vida humana e da não humana sobre a terra têm valor em si próprios (sinônimos: valor intrínseco, valor inerente). Esses valores são independentes da utilidade do mundo não humano para propósitos humanos.
2. A riqueza e a diversidade das formas de vida contribuem para a realização desses valores e são valores em si mesmas.
3. Os humanos não têm nenhum direito de reduzir essa riqueza e diversidade, exceto para satisfazer necessidades humanas vitais.
Diante de princípios como esses, algumas pessoas disseram que a ecologia profunda era misantropa. No entanto, quem os olhar objetivamente notará que, na verdade, essa ecosofia não é contra os humanos. Pelo contrário, ela é a favor de todas as formas de vida, nas quais se incluem os humanos. As duas posturas não são mutuamente exclusivas.
Para mais detalhes sobre a ecologia profunda, pode-se consultar Naess (1989) e Drengson & Inoue (1995), além do site do movimento (http://trumpeter.athabascau.ca), no qual está disponível on-line a sua revista oficial, The trumpeter.
Pouco tempo depois do surgimento do conceito de diversidade biológica (biodiversidade), começou-se a falar também em diversidade linguística (linguodiversidade), como se pode ver em Bastardas i Boada (1996). Mas, onde se pode ver a relação entre os dois tipos de diversidade discutida pormenorizadamente é em Maffi (2001), que defende a tese de que há uma relação inextricável entre as duas. Esse tópico é um dos mais importantes para a ecolinguística.

Ecolinguística
No caso específico das ciências da linguagem, surgiu na década de setenta um movimento em prol da diversidade, no bojo de uma visão ecológica do mundo, embora outras áreas das ciências sociais venham usando a ecologia como modelo desde pelo menos a primeira década do século passado, como é o caso da geografia humana e da sociologia. O conhecido sociolinguista Einar Haugen é um dos pioneiros desse movimento na linguística, como se pode ver em Haugen (1972), em que ele falou em "ecology of language" e "language ecology". Aí ele definiu o que na década de noventa viria a receber o nome de ecolinguística, que é a ciência das relações entre língua e meio ambiente (cf. Fill 1993, Makkai 1993, Couto 2007). Essa definição suscita três perguntas, quais sejam, (i) o que é língua, (ii) o que é meio ambiente da língua e (iii) o que se entende por relações entre língua e seu meio ambiente. É claro que não há espaço suficiente para examinar detalhadamente cada uma dessas questões. O que vou fazer aqui é tentar dar um início de resposta, bem sucintamente, uma vez que ele está discutido pormenorizadamente nas obras que acabam de ser mencionadas.
Podemos começar partindo do conceito mais importante da ecologia, ecossistema, e da visão do leigo, lembrando-nos de que seus componentes são população (P) de organismos, meio ambiente, habitat ou território (T) e inter-relações (I) entre os organismos. No caso do leigo, sempre que ele ouve o nome de uma língua que lhe é desconhecida, a primeira pergunta que sói fazer é que povo a fala. Ao ouvir a resposta, sua segunda pergunta é onde esse povo se encontra. Para ele, para que haja uma língua (L) tem que haver um povo (P) que a fale, vivendo e convivendo em determinado lugar ou território (T). Aí temos o ecossistema linguístico, que é o todo formado por L, P e T, representado na figura logo abaixo. Note-se que ele é ecossistema básico da língua, ou seja, o ecossistema fundamental (natural) da língua, também chamado de ecossistema natural da língua e de comunidade e, às vezes, até de ecologia fundamental da língua, uma vez que na própria ecologia às vezes se usa "ecossistema" por "ecologia" e vice-versa.
                        P
                      /    \
                    L----T
Ecossistema Fundamental/Natural da Língua (EFL)
Comunidade
Como se vê, linguagem (L) corresponde às padrões de comportamento, às inter-relações (I) da ecologia. Enfatiza-se, portanto, não primordialmente o sistema, mas os atos de interação comunicativa. Como vimos acima com Coseriu, o sistema, ou seja L num sentido próximo ao dos estruturalistas, é o como os membros da comunidade interagem entre si tradicionalmente. L é encarado de modo holístico, englobando o sistema, o que é muito diferente de afirmar que os atos de interação comunicativa são "realização" do sistema, como faz o estruturalismo. Pelo contrário, é o sistema que é parte da ecologia da interação comunicativa. A ecolinguística parte da fala para chegar à língua, para usarmos os termos de Saussure, não o contrário. Tudo na língua parte dessa base.
Apesar de fundamental, fundacional, o ecossistema natural da língua não é o único ecossistema linguístico. Ainda existem pelo menos dois outros. O segundo é o ecossistema mental da língua que, para a gramática gerativa é o único. É nele que a língua é formada, armazenada e processada, como já vêm mostrando a psicolinguística, o conexionismo e as neurociências, entre elas, a neurolinguística. Como a língua é uma espécie parasita da população (Mufwene 2001), o contato de línguas se dá nesse ecossistema, uma vez que, quando povos se encontram, o que entra em contato diretamente são pessoas, não línguas. O contato real entre duas (ou mais) línguas se dá no cérebro dos falantes, como os especialistas em contato de línguas já haviam reconhecido há muito tempo.
O terceiro ecossistema linguístico é o ecossistema social da língua. É nele que Haugen estava pensando quando propôs as conceituações que mais tarde dariam lugar à ecolinguística. É dele que trata a maioria dos ecolinguistas. Com efeito, é aí que entra tudo que tem a ver com o aspecto social da língua. Muitos investigadores chegaram a considerá-lo como sendo o único ecossistema da língua, sendo que, na verdade, ele é apenas um entre três. Ele vem sendo estudado pela sociolinguística (quantitativa e qualitativa), pela análise do discurso e outras disciplinas. Para mais detalhe sobre os três ecossistemas da língua, pode-se consultar Couto (2007).
Sabemos que o meio ambiente da população de organismos é parte do ecossistema. Na ecologia é o biótopo, habitat, nicho ecológico ou território, dependendo do ponto de vista. Pois bem, em cada um dos três ecossistemas linguísticos que acabamos de ver, a língua tem seu respectivo meio ambiente. No ecossistema natural da língua, o meio ambiente de L é P e T, juntos. Eles constituem o meio ambiente natural da língua. É o locus em que se dão as interações comunicativas. Vale dizer, é o mundo, que inclui o conjunto de indivíduos que constituem a população. Enfim é o entorno físico que em que a língua existe. Diferentemente do que ocorre no estruturalismo, ecolinguisticamente a língua não é reificada, não é considerada uma coisa. Ela corresponde ao I das inter-relações da ecologia, portanto, ela é interação, não a um dado físico do ecossistema.
No ecossistema mental da língua, o meio ambiente mental da língua é constituído pelas conexões neurais (sinapses) que se dão no cérebro dos indivíduos da comunidade. O meio ambiente social da língua, por fim, consiste na totalidade de indivíduos organizados em comunidade, vale dizer, a sociedade.
Neste momento podemos comentar perfunctoriamente que tipos de relações pode haver entre língua e seu meio ambiente. No caso do meio ambiente social, trata-se, antes de tudo da língua como marca da identidade do grupo. Perdê-la é perder o componente mais importante dessa identidade. A relação entre língua e povo é tão estreita que frequentemente dizemos a língua dos ... Assim, tucano é a língua do povo tucano; japonês, a língua dos japoneses; islandês, a dos islandeses, e assim por diante. Enfim, aqui a língua é encarada como um fato social, identificadora de determinado povo ou sociedade.
No ecossistema mental da língua, a relação entre língua e meio ambiente é muito difícil de ser observada diretamente. É necessário que haja uma metodologia como a dos behavioristas, que observavam o comportamento externo a fim de se inferir o que ia por dentro. Assim procede a psicolinguística. De certo modo, é também assim que procedem os conexionistas, uma vez que fazem simulação das conexões neurais no computador a fim de obterem respostas sobre o processamento da linguagem. A neurolinguística, por seu turno, já dispõe de alguns instrumentos de observação do cérebro relativamente eficientes, fato que começou com as pesquisas de Broca (1824-1880) sobre a lateralização e as de Wernicke (1848-1905).
As relações entre língua e meio ambiente natural talvez tenham sido as primeiras a ser estudadas. Desde os gregos se tem estudado a relação entre palavra e coisa. Até pelo menos a idade média esse tipo de estudo esteve presente na preocupação dos filósofos. No final do século XIX a escola dialetológica Wörter und Sachen (palavras e coisas) também se dedicou a esse tipo de estudo, chamando de onomosiologia o estudo que vai das coisas para as palavras e de semasiologia o que vai da palavra para as coisas que ela designa.
É importante ressaltar no presente contexto que a ecolinguística engloba os três ecossistemas, permitindo estudar cada um deles, ou até um aspecto limitado de cada um deles, de uma perspectiva unificada, que é a visão de mundo introduzida pela teoria da relatividade e pela ecologia, posição que, nas filosofias orientais, já vinha sendo defendida há mais de três mil anos. É uma posição que engloba os diversos aspectos da linguagem e do mundo, encarando-os não como antagônicos, mas como complementares na imensa teia da vida.
Diversidade linguística
Até aqui, estivemos preparando o contexto para discutir a questão da diversidade linguística. Agora é chegado o momento de inseri-la nesse contexto. Podemos iniciar a discussão perguntando o que é melhor para as sociedades humanas, o monolinguismo ou o multilinguismo. Para os agentes do estado, como os governantes e, sobretudo aqueles que têm pendor para o autoritarismo, o ideal é um país monolíngue e, se possível, monodialetal. Durante a ditadura franquista na Espanha, os catalães não tinham o direito de considerar seu modo de falar específico como uma língua independente do espanhol, mesmo dispondo de uma literatura tão antiga quanto a castelhana. O galego era claramente um "dialeto".
Em diversos outros países se se deu e/ou se dá algo semelhante. A China não reconhece diversas modalidades linguísticas existentes em seu território como línguas. Para as autoridades, cantonês, hakka, gan, min (kokkien e taiwanês) e outros são meros "dialetos" do mandarim, ou pu tong hua, mesmo que não haja intercompreensão entre alguns deles. Para os agentes do estado chinês, a diversidade linguística é um estorvo ao centralismo que sempre caracterizou a China. Para quem ache que isso se dá só porque a China é uma ditadura, será uma grande surpresa descobrir que o centralismo é uma das características mais marcantes da "democrática" França. Seus dirigentes têm lutado desde o começo do país como tal para desfazer toda e qualquer diversidade regional, como o provençal, o catalão e o bretão. Há uma política deliberada de unificar tudo pelo modelo de Paris.
Na ex-União Soviética havia uma política linguística leninista aparentemente reconhecedora da diversidade linguística, vale dizer, do multilinguismo. Só que todos tinham que aprender o russo, quisessem ou não, uma vez que ele era "uma língua internacional" e "de união nacional", no meio do multilinguismo. Na ex-Iugoslávia algo muito semelhante se passava. Na letra da lei (na constituição) estava dito que todos as línguas do país de então (esloveno, servo-croata, macedônio etc.) tinham os mesmos direitos. Na prática, porém, uma eslovena me disse que se exigisse ser atendida em esloveno em uma embaixada do país no exterior não seria bem-vinda. Tinha que falar em servo-croata, que era a língua da região dominante e da capital (Beogrado), embora a mais rica fosse a Eslovênia. Aliás, é interessante notar que, na verdade, sérvio e croata são duas variedades linguísticas tão parecidas que chega a haver intercompreensão entre eles. Mesmo assim, o sérvio utiliza a escrita cirílica e o croata se vale do alfabeto latino. A questão é tão controversa que um croata protestou na época dizendo que o certo não era servo-croata, mas croata-sérvio, uma vez que o croata era mais "importante" do que o sérvio.
Todas essas políticas linguísticas centralizadoras têm por objetivo manter uma pretensa unidade culturo-linguística a ferro e fogo. Mas, acima de tudo, uma artificial unidade política do estado. Esquecem os inimigos do multilinguismo que ele representa diversidade e, como vimos na ecologia, diversidade é riqueza e garantia de sobrevida. Tanto que há países multilíngues em que as diversas línguas convivem em relativa harmonia. O caso mais conspícuo é o da Suíça. Não há grandes conflitos entre a variedade local de alemão (Schwyzertütsch), a do francês, a do italiano ao sul e a do romanche ou engadino (quarta língua) do centro, embora saibamos que há uma certa predominância das duas primeiras e, às vezes, mais da segunda.
Como mais uma comprovação de que variedade linguística representa riqueza cultural, basta comparar a rica tradição cultural chinesa e a indiana, por exemplo, com o monoculturalismo dinamarquês e islandês. Muitas línguas implicam grande diversidade de modos de encarar o mundo, de lidar com ele e, consequentemente, representam diversidade cultural, riqueza cultural.
Diversidade linguística no Brasil
Desde pelo menos a década de setenta, Aryon Rodrigues vem salientando o fato de que o Brasil não é um país monolíngue, como muitos pensam. Embora o Nordeste tenda a sê-lo, uma vez que uma das poucas línguas que ainda é falada além do português é o iatê dos índios fulniô, as demais regiões do país são particularmente plurilíngues (Rodrigues 1975). Ao sul temos as diversas línguas de imigrantes, tais como o alemão, o italiano e, até certo ponto, o polonês e o ucraniano, entre outras. O japonês tem uma forte presença em São Paulo e adjacências. A região centro-oeste é altamente multilíngue. A amazônica mais ainda, sobretudo no Alto Rio Negro. A tal ponto que em São Gabriel da Cachoeira duas línguas ameríndias (tukano e baniwa) e uma língua franca (nheengatu) foram declaradas legalmente oficiais no nível municipal. Mesmo que isso não tenha muitas consequências práticas, o fato por si só já é indicativo do multilinguismo vigente na região.
A cidade de São Gabriel da Cachoeira é um verdadeiro mosaico de línguas. Além do português, pode-se ouvir aí inclusive espanhol. Na verdade, dos cerca de 10 mil habitantes, aproximadamente 95% são de origem ameríndia, predominando os tukanos. Existem três bairros indígenas, ou seja, Dubaru, Areal e Tirirical. Nesses bairros, cada indivíduo se atém a sua língua paterna, embora sejam em geral poliglotas. Em Areal, por exemplo, a maioria fala tukano, mesmo quando pertencem a outros grupos. Os mais jovens falam também português e, às vezes, nheeentagu. Outros falam baniwa. Um homem tuyuka está bastante tukanizado, devido ao fato de ter se casado com uma mulher tukana, motivo pelo qual fala a língua dela em casa. Um desano fala tukano, enquanto que um caboclo fala português, ao passo que seu vizinho fala espanhol.
Na região do Alto Rio Negro como um todo são faladas várias línguas de três famílias, que são tukano oriental, aruak e maku. Entre as da primeira família temos o tukano, o desana, o tuyuka e o wanana. Entre as do segundo, temos baniwa, koripako, baré, warekena e tariana. As da terceira família compreendem, entre outras, bará, hupda, yahup, nadëb, kumã e guariba. Além disso, temos a língua geral amazônica, ou nheengatu.
No contexto do multilinguismo brasileiro, não podemos esquecer a língua dos ciganos, genericamente conhecida como romani, de rom 'homem', não de "romano". Alguns grupos afirmam que falam "romanês". Na verdade, há dois tipos de ciganos. Os calons, descendentes dos calós espanhóis e dos calãos portugueses, começaram a chegar aqui nos primeiros anos de colonização, ou seja, aproximadamente em 1530. Estão inteiramente aculturados e têm o português como língua principal. No entanto, nas interações intragrupais ainda utilizam parte do vocabulário calon original, no contexto da gramática portuguesa, de modo que não são entendidos pelos de fora. As comunidades mais significativas ficam em Sousa (PB), no norte de Goiás (Mambaí e arredores), em Sobral (CE), no Recôncavo Baiano, em Trindade (GO) etc. A língua dos calons de Mambaí está descrita em Melo (2005); a dos de Sobral, em Bessa (2004).
Os demais ciganos vieram para o Brasil em época mais recente, originários basicamente da Europa do Leste. Pertencem majoritariamente ao grupo kalderash, como os de Campinas (SP). Há comunidades também em Uberlândia (MG), Aparecida de Goiânia (GO), Contagem (MG) etc. As comunidades desse grupo mantém mais o romani original, língua altamente flexional. Para uma visão de conjunto dos ciganos no Brasil, pode-se consultar Couto (2002). O romanês de Contatem foi estudado por Vieira e Macedo (1999); sobre a variedade de Goiânia há a pequena monografia de Olivência e Sousa (1992). Infelizmente, não há muitos estudos sobre as diversas variedades de romani do Brasil. Talvez seja uma das línguas do país mais invisível. Até as línguas indígenas têm mais visibilidade do que a dos ciganos.
Talvez mais invisível ainda do que o romani seja a língua de sinais dos surdos, conhecida como LIBRAS, mesmo que todos nós conheçamos um ou outro surdo, ou vejamos de vez em quando dois ou mais surdos comunicando-se mediante gestos (em Portugal diz-se "línguas gestuais"). É bem verdade que já há alguns estudos, como os da pioneira Lucinda Ferreira e, mais recentemente, os de Ronice Quadros, entre outros. Aqui como alhures, em geral se preocupa mais com a questão do ensino (de suma importância) do que com a descrição que, a meu ver, deveria preceder todos os demais tipos de estudos. Em Couto (2005) há um apanhado ecolinguístico da situação, partindo das noções de comunidade de língua e comunidade de fala.
Enfim, o Brasil ainda é um país multilíngue. No entanto, exceto o português e, talvez, LIBRAS, todas as demais línguas estão ameaçadas de extinção. No caso específico das línguas indígenas, Rodrigues (1993) apresentou a estimativa de que seriam cerca de 1.200 quando os portugueses chegaram a Porto Seguro (BA) em 1500. Hoje, no entanto, elas não passam de umas 180. Isso significa uma perda de aproximadamente duas línguas por ano, o que não é pouca coisa. O que é pior. As que ainda existem são enclaves, ou ilhas linguísticas, no interior do território da língua dominante, como é o caso do "arquipélago" do Parque Indígena do Xingu e o do Alto Rio Negro. Nem as línguas dos grupos com menos contato com a sociedade de língua portuguesa estão a salvo desse processo constritor. Isso ocorre porque os invasores de origem europeia foram tomando suas terras pouco a pouco ou, então, empurrando-os para regiões de terras menos férteis. Os guaranis do sul de Mato Grosso do Sul, entre vários outros, estão sofrendo um processo de desagregação. Em termos ecolinguísticos, sua língua e sua cultura estão em processo de obsolescência devido ao fato de os invasores terem usurpado seu T. Vimos que qualquer grupo étnico só terá sua identidade garantida se tiver o tripé L, P e T íntegro. Pior do que a perda de T é só o extermínio de P.
Diversidade dialetal
Já foi avançado acima que tampouco a diversidade dialetal é bem-vista pelos agentes do estado, pelos normativistas, pelo sistema escolar e pelos conservadores em geral. O desejo de todos eles é uma língua homogênea, compacta, sem variação interna e, é claro, imutável. Felizmente, porém, não existe nenhuma língua natural no mundo que apresente todas essas características. Só línguas artificiais como o esperanto pode tê-las, pelo menos até certo ponto, uma vez que mesmo ele tem que se adaptar às condições de cada país em que tem falantes. O fato é que, com a muito improvável exceção de línguas de pequenos grupos étnicos homogêneos, todas as línguas do mundo apresentam muita variação interna, muita dialetação.
Gostaria de começar a discussão falando sobre a espinhosa questão da distinção entre língua e dialeto. Corre um dito entre os linguistas segundo o qual "língua é um dialeto com um exército e uma marinha", atribuído a Max Weinreich, que teria proferido a frase em uma aula em que Joshua Fishman estava presente, como se pode ver discutido detalhadamente em Couto (2009: 133-134). Em suma, do ponto de vista estritamente linguístico, não há nenhuma diferença entre língua e dialeto. Trata-se de uma distinção que tem a ver com poder. O grupo que tem a força suficiente para impor sua variedade linguística como língua, tê-la-á assim considerada, como aconteceu com o catalão e o galego. De qualquer modo, vou partir do pressuposto de que o português brasileiro apresenta muitas variedades dialetais, às vezes chamadas de falares, às vezes de "sotaque".
É bem verdade que a situação do português brasileiro não é igual à do alemão nem à do italiano, para não falar da do chinês. A variedade de alemão falada na Suíça, o Schwyzertütsch, é tão distante do alemão "padrão" (Hochdeutsch) quanto o holandês. No entanto, o holandês é considerado língua, pelo fato de ser a língua oficial do estado Holanda, ao passo que o Schwyzertütsch é considerado dialeto. A situação brasileira não se aproxima nem da de Portugal, a despeito do pequeno tamanho desse país. De qualquer forma, o habitante de Chuí no extremo sul às vezes tem alguma dificuldade em entender o do extremo norte, sobretudo se forem de pouca instrução. O fato é que se pode falar em dialeto sulino, dialeto nortista, dialeto nordestino e outros, cada um deles com diversas variações regionais. Isso no que tange apenas à variação regional, embora haja outros tipos de variação.
Um tipo de variação é a variação social. Por exemplo, em uma cidade como São Paulo, temos variedades em que se diz, ou melhor, se escreve (1)
(1) Amanhã nós trabalharemos
até aquelas em que se diz (2)
(2) Amanhã nóis vai trabaiá
No meio das duas há um contínuo de variação em que é possível dizer-se o que se vê de (3) a (5).
(3) Amanhã nós vamos trabalhar
(4) Amanhã nóis vamos trabalhá
(5) Amanhã nóis vamo trabalhá

O enunciado (1) é compatível com o dialeto chamado padrão, geralmente usado na escrita. O (2) é típico dos dialetos rurais, embora ele seja usado também na periferia das cidades e/ou nas zonas de favelas. Vale dizer, aquela região de transição entre o rural e o urbano. Os dialetos rurais, e derivados urbanos, representados em (2) são altamente estigmatizados.
Gostaria de abrir um parêntese para dizer que, uma vez que designações como "dialeto padrão" ou "culto" são preconceituosas, eu prefiro falar em dialeto estatal. Assim ele diz a que veio, ou seja, estar a serviço do estado, independentemente de ser objetivamente usado em atos de interação comunicativa ou não. Ele é impositivo, porque normativo. Quanto aos dialetos rurais, têm muita afinidade com os regionais.
Pelo fato de os dialetos rurais serem estigmatizados pelos urbícolas, seus falantes rurícolas se sentem inseguros quanto falam com eles. Por isso cometem hipercorreções, como "malmita", "galfo" e "melha" por "marmita", "garfo" e "meia", respectivamente. Elas ocorrem porque os rurícolas sabem que pronúncias normais de seu dialeto como carça (calça) e teia (telha) são ridicularizadas pelos urbícolas. Por isso, ao falar com eles, tentam evitar "r" pós-vocálico e "i" intervocálico, substituindo-os por "l" e "lh", respectivamente, mesmo onde o dialeto estatal não o faz. Mas, é importante lembrar que os rurícolas só assim procedem na presença de urbícolas. Em sua comunidade, falam normalmente, sem cometer hipercorreções. E eles são bastante eloquentes.
É difícil entender a razão da estigmatização dos dialetos rurais. Sabemos que a função básica da linguagem é servir para o entendimento nos atos de interação comunicativa. Nesse sentido, não há nenhuma perda de informação em (2) relativamente a (1). Do mesmo modo que o enunciado de (6) não tem nenhuma informação relevante que não esteja também presente em (7).
(6) Todas as meninas pequenas chegaram atrasadas
(7) As menina pequena chegô tudo atrasado.
Na verdade, (6) é altamente redundante do ponto de vista da informação que carrega. A informação de que se trata de mais de uma menina está presente em absolutamente todas as palavras. A de que se trata de um ser do sexo feminino está presente em todas menos no verbo. Quanto a (7), informa a pluralidade apenas no artigo, sendo que o gênero feminino está presente apenas no núcleo do sintagma e em seus adjuntos. A despeito disso, (7) contém a mesma informação que (6).
Acontece que as elites estão voltadas para o dialeto estatal, mesmo que não o usem quotidianamente e só tenham acesso a ele mediante prepostos. Elas o têm apenas como alvo distante a ser atingido. Por outras palavras, como as elites da moda, gostam de complicar as coisas a fim de se distanciarem das pessoas comuns. A função dos "estilistas" é "inventar moda" com essa finalidade.
Gostaria de finalizar esta seção chamando a atenção para a riqueza polidialetal do alemão frente à pobreza monodialetal do islandês. Poder-se-ia alegar que o alemão é falado em uma grande extensão de terra, e que o trato de terra em que o islandês é falado é relativamente bem menor. É verdade. Independentemente disso, porém, a grande riqueza do alemão está justamente na sua pródiga diversidade. Talvez não seja por acaso que muitos dos grandes filósofos sejam de língua alemã. Riqueza expressiva permite expressar mais sutilezas de pensamento.

Diversidade idioletal
O conceito de diversidade é importante também no nível da linguagem do indivíduo, ou seja, no nível idioletal. Cada um de nós tem sua maneira especial de usar a linguagem da comunidade, ou seja, de se expressar. Algumas pessoas falam alto, outras falam baixo. Algumas falam pausadamente, outras falam rápido. Há pessoas que têm um tom grave de vez, outras o têm mais agudo, e assim por diante. Nenhum desses modos de se expressar interessa diretamente ao assunto em tela, uma vez que têm a ver diretamente com a fisiologia. O que interessa aqui são os modos de se expressar que têm a ver com a linguagem comunitária, ou seja, aqueles que contribuem para a eficácia dos atos de interação comunicativa, que têm valor social.
Algumas pessoas gostam de usar palavrões, do tipo "grande pra caralho", "puta que pariu", entre outras mais feias. Outras têm uma linguagem impositiva, terminando tudo sempre com "cê tá me entendendo?", "Certo?", "correto"? e outras. Às vezes se usa uma expressão mais neutra, tal vomo "sabe?", como gosta de fazer o presidente Lula. Outras são mais cooperativas, terminando seus enunciados com "né?" ou "tá?", por exemplo. Em Minas Gerais se diz inclusive "Sãm?" Quem assim se expressa está solicitando a anuência do ouvinte, numa atitude bastante colaborativa.
Há umas poucas pessoas que procuram usar uma linguagem escorreita sempre que possível, procurando evitar regionalismos, ruralismos e outras expressões populares, sobretudo quando estão em público. Já ouvi dessas pessoas coisas como "parece-me" em vez de "me parece", que seria o de se esperar na linguagem coloquial brasileira. Outras, por outro lado, preferem uma linguagem mais popular. Usam até mesmo frases como a de (2) e a de (7) acima. Num grupo reunido para contar/ouvir piadas isso é muito comum. Parece que a piada está intimamente ligada à linguagem popular, que lhe dá um sabor especial. Uma piada numa linguagem como a de (1) e a de (6) não teria a menor graça. Pareceria muito burocrática.
Alguns indivíduos têm grande facilidade de expor seus pensamentos. São altamente loquazes, falando pelos cotovelos, como se diz vulgarmente. Por outro lado, há aqueles que têm dificuldade em fazê-lo. Mesmo que sejam grandes gênios, não conseguem se comunicar muito bem com o outro e, muito menos, com o público. Eu mesmo tive diversos professores que se enquadrariam nas duas categorias. Outro exemplo seria o grande linguista Roman Jakobson, que não era um comunicador como Sílvio Santos. Eu tive o privilégio de assistir uma conferência sua, em 1968. Notei que muita gente no fundo do auditório começou a conversar, apesar de estarem na frente do maior linguista da época e, talvez, de todos os tempos.
Existem indivíduos que, apesar de terem dificuldade de se expressar oralmente, escrevem muito bem. Mas, há também aqueles que, apesar de falarem muito bem, de serem bem eloquentes, têm dificuldades com a expressão escrita. Eu conheci uma pessoa que discutia o assunto de sua tese de doutorado nos mínimos detalhes. Porém, não conseguir por nada no papel. Estava inteiramente bloqueada para a expressão escrita.
Tudo isso tem a ver diretamente com as diferenças individuais, ou seja, com o estilo individual e, estilo é a marca pessoal. Além do mais, é manifestação da grande diversidade de meios expressivos existentes em determinada língua. Cada um é mais ou menos hábil nesse ou naquele setor. Não cabe a nós julgar isso ou aquilo de bom ou ruim, bonito ou feio.
Se fôssemos todos iguais, seríamos como robôs. O que a humanidade tem de interessante é justamente a diversidade, que se manifesta também na cor da pele, dos olhos e dos cabelos; na estatura; na massa corporal (magro, gordo); no tipo de personalidade; nos gostos pessoais etc. É a diferença, ou diversidade, que dá uma pitada especial de sal ao mundo e à sociedade. Afinal, como dizem as filosofias orientais (como o taoísmo), sem o pequeno não há o grande, sem o feio não há o bonito, sem o mau não há o bom e assim por diante. No taoísmo, esses conceitos polares são encarados como complementares, constituindo um todo, uma vez que se articulam ao longo do mesmo eixo. Na sociedade capitalista ocidental, eles são encarados como opostos, antagônicos. Isso mostra que a visão de mundo oriental parece ser mais compatível com a aceitação da diversidade do que a ocidental.
Diversidade em geral e direitos linguísticos
Além das variedades dialetais, o português tem, como a grande maioria das línguas naturais do mundo, uma variegada gama de linguagens especializadas. Nesse contexto existem as variedades grupais, as profissionais, as gírias, os jargões profissionais etc. Alguns jargões chegam a receber nomes, como "juridiquês", "economês" e outros. Entre as gírias não se pode esquecer as dos grupos criminosos e dos presídios em geral. O objetivo é sempre manter segredo frente aos de fora.
Um fato interessante que se nota em todas essas linguagens especializadas é que estão sempre associadas a determinado grupo, que se encontra em determinado lugar. Isso vem comprovar pela enésima vez a valor heurístico do modelo da ecologia fundamental da língua, expresso na figura acima. No caso, o grupo é P, o lugar é T e a gíria ou jargão é L.
Uma língua só terá vitalidade se todos os componentes do tripé mostrado no ecossistema fundamental da língua tiverem vitalidade. A saúde de uma comunidade de língua, nome alternativo desse ecossistema, depende da saúde de cada um dos componentes do tripé. Faltando T, ou sendo ele restringido, como no caso de grande parte das línguas indígenas da América, L estará altamente ameaçada. Faltando L, não haverá, por definição, ecossistema linguístico. É bem verdade que existem vários grupos ameríndios brasileiros que já não têm a L própria. No entanto, a sua existência como grupo está altamente prejudicada, uma vez que a língua é um dos principais componentes da identidade grupal. Por fim, se houver só L, tratar-se-á de fósseis de uma língua morta, registrada em documentos escritos ou em palavras esparsas aqui e ali.
Nesse contexto, gostaria de evocar a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos (DUDL), elaborada nas décadas de oitenta e noventa. Ela foi inspirada pela Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), de 1948. Gostaria de começar salientando que ela reconhece implicitamente a validade do ecossistema fundamental da língua, ao afirmar na Seção I, artigo 15, que "Toda comunidade linguística tem direito a que sua língua seja utilizada como oficial dentro de seu território". É o que está tentando fazer a prefeitura de São Gabriel da Cachoeira com o nheengatu, o tucano e o baniwa.
Logo no início, a DUDL expõe a sua por assim dizer diretriz básica, que é
"Todas as línguas são a expressão de uma identidade coletiva e de uma maneira distinta de perceber e de descrever a realidade, portanto possuem o poder de gozar das condições necessárias para seu desenvolvimento".
Um pouco mais abaixo, ela declara que
"1. Todas as comunidades linguísticas têm direito a organizar e gerir os recursos próprios, com a finalidade de assegurar o uso de sua língua em todas as funções sociais.
"2. Todas as comunidades linguísticas têm direito a dispor dos meios necessários para assegurar a transmissão e a continuidade futura de sua língua".
Em outra passagem, está dito que
"Esta Declaração considera inadmissíveis as discriminações contra as comunidades linguísticas, baseadas em critérios como seu grau de soberania política, sua situação social, econômica ou qualquer outra, assim como o nível de codificação, atualização ou modernização de suas línguas".
Como está dito logo no início a DUDL,
"Todas as línguas são a expressão de uma identidade coletiva e de uma maneira distinta de perceber e de descrever a realidade, portanto possuem o poder de gozar das condições necessárias para seu desenvolvimento".
Todo o texto da DUDL vai pelo mesmo diapasão, sempre na defesa dos direitos das minorias linguísticas. Tudo isso, ao lado de parte da opinião pública, tem contribuído para o reconhecimento desses direitos, mesmo diante da intransigência dos detentores do poder central. No bojo dessa nova mentalidade, está emergindo uma consciência sobre os direitos das diversas minorias, às vezes nem não tão minorias assim, como as mulheres. É por isso que o movimento negro, os movimentos em defesa dos povos ameríndios, o feminismo e o movimento gay estão conseguindo que seus direitos como cidadãos sejam reconhecidos. Eles estão avançando mesmo diante da forte pressão oriunda dos bolsões conservadores da sociedade. No entanto, a pressão para se reconhecerem esses direitos é muito forte. Está se tornando cada vez mais difícil para esses bolsões se manifestarem contra os avanços democráticos. Quem quiser ler mais sobre a DUDL, pode consultar Couto (2007: 392-403), Oliveira (2003) e alguns sites, tais como:

http://penclube.no.sapo.pt/pen_internacional/dudl.htm
O "certo" e o "errado"
No fundo, no fundo, a relutância em aceitar a diversidade tem a ver com a questão do "certo" e do "errado". Tudo que é diferente é tido como errado pelos agentes do estado e pelos normativistas. Todos nós estamos cansados de ouvir durante (e até após) nosso tempo de frequência à escola, que enunciados como o de (2) e o de (7) estão "errados". O certo é o que está em (1) e em (3). No que tange a (4), é admissível nos discursos orais. Mas não nos escritos. Tanto que muita gente "culta" se manifesta assim, frequentemente até mesmo como o que está em (5).
Existem diversos profissionais cuja principal atividade é a de juiz do certo e do errado. Diante de uma redação de um aluno na escola, a tarefa principal deles é riscar o texto discente de vermelho de ponta a ponta. Eles não estão preocupados com o conteúdo da redação, como, por exemplo, a coerência, se há coesão entre as partes, se o texto flui naturalmente da introdução para a discussão do tópico principal até chegar à conclusão. O que eles querem são os "erros" de ortografia, de concordância e quejandos, como caçadores de erros que são. Como sabemos, nada disso afeta o principal que é o conteúdo.
Esses caçadores de erros nunca se deram o trabalho de perguntar o que vem a ser "erro", mesmo porque não conseguiriam dar uma resposta filosoficamente fundamentada à pergunta. O que fazem é dizer "isso está errado", "aquilo está certo". No caso, "errado" é o que foge dos estreitos padrões do português estatal; "certo" é tudo aquilo que está dentro desses padrões. Os juízes do certo e do errado não têm nenhuma dúvida, só certezas. Se por acaso são surpreendidos por algum tipo de incerteza sobre se determinada expressão está "certa" ou "errada", eles consultam seu manual de português estatal e pronto. Se está lá, está correto. A questão da lógica, da racionalidade e da eficácia comunicativa não vem ao caso. Basta estar no manual de português que compraram na livraria da esquina.
Os antropólogos, ao contrário desses juízes do certo e do errado, têm muitas dúvidas sobre o que pode ser considerado "certo" e o que pode ser considerado "errado". Tudo depende de cada comunidade linguística. Mas, na ecologia profunda existe uma sugestão, que pode ser considerada uma tentativa de direcionamento. Para ela, se quisermos falar em "certo" e "errrado", só pode ser considerado "errado" aquilo que traz sofrimento. O que não o traz não pode, legitimamente, ser assim considerado. Por exclusão, está "certo".
Certa feita se perguntou a Arne Naess qual era sua posição sobre a situação da mulher em algumas sociedades radicais muçulmanas. Como sabemos, em algumas delas a mulher só tem obrigações, nenhum direito frente ao homem. Ela é uma propriedade dele. Se desobedecer, pode ser agredida na rua pelo primeiro idiota que passar por perto. Nesse caso, alguns antropólogos alegam que o fato é cultural, portanto, devemos respeitá-lo, como costume local. Para Naess, porém, a posição mais sensata seria a de apoiar a pequena minoria esclarecida dessas mesmas comunidades que não concorda com esse tipo de prática. Assim, estaríamos apoiando gente de dentro da própria comunidade em questão.
No caso da linguagem, o ecolinguista Adam Makkai (cf. Makkai 1993) chegou a afirmar que "certo" é o que é usado por alguns membros da comunidade. Assim, se muita gente diz coisas como "ele é de menor", "isso é bonitésimo" e "a roupa é chiquérrima", não cabe a nós dizer que está "errado". Um dos motivos para isso é que quem as disse se fez entender. Por mais que os normativistas torçam o nariz diante de expressões como essas, elas apenas mostram que a língua é dinâmica, está sempre se adaptando às novas necessidades comunicativas de seus falantes. Há mais mudanças em curso do que podemos perceber. Eu poderia fazer um longo inventário delas aqui, mas seria ocioso. O mais importante é que língua é o modo pelo qual os membros de determinada comunidade interage entre si verbalmente. O objeto deles é se fazerem entender. Como os rurículas não estão preocupados com questiúnculas como "certo" e "errado".
Enfim, há autores que afirmam que "certo" é o comportamento que advém de uma tentativa de se adaptar ao contexto que se apresenta. Quanto a "errado", seria o que não se adéqua às novas circunstâncias. Por outras palavras, "certo" é o que está adaptado; "errado", o que está desadaptado. Como vemos, essa concepção de "certo/errado" tem a ver com a diversidade e com a evolução: diversidade porque cada novo contexto é diverso do precedente; evolução porque, adequando-se a novas ecologias, a língua está se transformando.
Um argumento, fraco, dos caçadores de erros é que se admitirmos toda novidade que apareça a língua se alterará tão rapidamente que em pouco tempo não haverá entendimento entre as pessoas. Esse argumento vesgo não alcança o fato de que se a língua está mudando é porque os falantes sentiram necessidade de mudá-la a fim de que continue servindo de meio de comunicação nas novas circunstâncias. A língua existe para o entendimento, e o objetivo de todo mundo ao falar é se fazer entender. Esse entendimento não depende dos agentes do estado e, muito menos, dos normativistas. Aliás, se a língua fosse como eles gostariam que fosse, logo, logo ela se estiolaria, se congelaria, deixando de servir de meio de comunicação eficaz. Ironicamente, haveria sé incomunicação se a língua não mudasse, vale dizer, não se adaptasse às novas ecologias.
Observações finais
Todos os "problemas" discutidos nas seções anteriores têm a ver, direta ou indiretamente, com a questão da diversidade. Dito de outro modo, a relutância dos agentes do estado, dos normativistas e do sistema escolar em aceitar o multilinguismo e o multidialetalismo significa não aceitação da diversidade interlingual e da intralingual, respectivamente. A dificuldade em aceitar maneiras de se dizer algo de modo diferente do próprio modo de fazê-lo é reflexo direto do não reconhecimento das diferenças individuais. Se fôssemos todos agir exatamente como essas personagens desejam, o mundo seria extremamente monótono. Felizmente, a diversidade se manifesta urbi et orbi.
A aceitação da diversidade implica tolerância. Implica aceitar o modo de cada indivíduo se expressar; aceitar as pessoas como elas são, contanto que isso não invada o espaço do outro. Vale dizer, a menos que não seja agressiva para determinados segmentos da sociedade, não devemos condenar determinada manifestação linguística só porque não é a que nós próprios usaríamos. Nós temos até o direito de não achar bonito ver alguém usando muito palavrão. Se isso não nos insulta, nem a ninguém que esteja por perto, não temos o direito de censurar essa pessoa. Se determinada expressão for insultuosa para determinados grupos, segmentos da sociedade ou até para algum indivíduo, o próprio falante pagará o preço por isso.
Tudo aquilo que for potencialmente ofensivo a determinados grupos ou indivíduos tem sido chamado de contrário ao politicamente correto. Nesse sentido, cada um de nós deve policiar a própria linguagem a fim de não ofender ninguém. Porém, esse policiamento deve ser feito com critério. Do contrário cairíamos em uma linguagem insossa, insípida. Como disse um humorista na televisão, se não for possível usar palavras como "sapatão", "viado" entre outras, praticamente não há como contar piadas. Tem que haver bom senso e sensibilidade para saber o que é conveniente em determinado meio e o que não é. A língua é muito rica. A despeito da origem, não precisamos deixar de lado palavras como "judiar" (< judeu), "denegrir" (< negro), ao lado de expressões como "a coisa está preta". A última, aliás, parece ter a ver com a escuridão, não com a raça negra.
Diante da consciência social que já existe, hoje pega mal, pelo menos é punível legalmente, usar expressões preconceituosas contra determinados grupos. No entanto, para ser politicamente correto, não precisa chegar a absurdos como o caso de uma presumível feminista americana que viu machismo na palavra "history" (história), por começar por "his" (dele). Em alemão, às vezes se vê recomendação para se evitar man (a gente, se), uma vez que foi tirado de Mann (homem, varão). Levando essa tendência a seu extremo, os franceses deveriam deixar de usar on (a gente, se), já que a forma provém de homme (homem), mesmo sendo corrente no dia a dia do país.
O mundo tem mudado muito. Muita coisa que é admissível hoje era proibida até bem pouco tempo atrás, bem como muita coisa que é inadmissível hoje era normal em épocas passadas. Portanto, é sempre bom ser tolerante diante da diferença, da diversidade, a despeito do fato de essa tolerância ter feito aumentar a violência, uma vez que foi mal compreendida. A tolerância não é unidirecional, ou seja, de nós para os outros. Pelo contrário, é deve ser bidirecional, vale dizer, dos outros para conosco também. Havendo respeito pela diversidade e bom senso, tudo isso se dará normalmente.
Referências
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sexta-feira, 1 de abril de 2011

O prefixo 'sem' no português brasileiro: uma abordagem ecolinguística (com Maria Aparecida Curupaná da Rocha Mello)

NOTA
Uma outra versão deste texto foi publicada na revista dos Lusitanistas Alemães, Lusorama 101/102, p. 119-132, 2015, em coautoria com Elza Kioko N. N. do Couto. Ver www.lurorama.de


Nos últimos anos a expressão "sem-terra" tem aparecido na imprensa quase diariamente. Às vezes, pode-se ver também "sem-teto", em um sentido que tem algo a ver com o de "sem-terra". Pelo menos "sem-teto" tem equivalentes em outras línguas, como no inglês "homeless" e o alemão "Obdachlos". Isso é interessante, porque mostra que é uma necessidade das línguas dispor de alguma forma de derivação para criar uma palavra para designar "privação de algo", que é, justamente, o caso do "-less" inglês e do "-los" alemão. A construção inglesa e a alemã são casos indiscutíveis de derivação. No caso das duas construções brasileiras, no entanto, parece que os gramáticos não as têm encarado como tal. Talvez sejam consideradas como casos de composição, no caso, preposição + substantivo.
O objetivo deste pequeno ensaio é fazer um estudo de construções como as de "sem-terra" e "sem-teto", tentando mostrar que o "sem-" é um novo prefixo que está se insinuando no português brasileiro e que já apresenta uma certa produtividade. O arcabouço em que trabalhamos é o que se vem chamando de ecolingüística (Fill 1993). Para o tratamento dos dados, usamos software Contexto, produzido por Jehferson Wohllerz de Mello, para ser usado no que atualmente se vem chamando de lingüística de corpus, que trabalha com grande quantidade de dados.
Parece que uma das primeiras construções, se não a primeira, com "sem-" que surgiu na língua foi "sem-vergonha". Há muito tempo essa construção é largamente usada em todos os níveis de linguagem, em todas as regiões do Brasil. É bem provável que ela tenha sido modelo para as duas que foram mencionadas acima. É provável também que, sobretudo no caso de "sem-teto", o inglês tenha tido alguma influência, uma vez que essa língua tem sido uma fonte constante de empréstimos para nossa língua. O mais provável é que os dois fatores podem ter tido alguma influência na emergência desse novo tipo de construção morfológica em português.
Usando o programa Contexto, verificamos as ocorrências de palavras derivadas iniciadas por "sem-" em textos jornalísticos de todos os estados brasileiros, coletados por Maria Aparecida Curupaná da Rocha Mello, com um total de 1.047.743 palavras, quantidade considerada mínima pela lingüística de corpus. Os resultados obtidos estão reproduzidos no quadro a seguir.

Ocorrência          Porcengagem
sem-terra..............6
sem-casa..............3
sem-teto...............3
sem-vergonha.......2
Total................... 14

Parece pouco, diante da freqüência com que ouvimos falar sobretudo em "sem-terra". Por isso, consultamos o dicionário Houaiss, no qual encontramos os seguintes exemplos:

sem-amor, sem-cerimônia, sem-dinheiro, sem-família, sem-fim, sem-gracice, sem-justiça, sem-lar, sem-luz, sem-nome, sem-número, sem-pão, sem-par, sem-pudor, sem-pulo, sem-razão, sem-sal, sem-segundo, sem-serifa, sem-termo, sem-terra, sem-teto, sem-trabalho, sem-ventura, sem-vergonha.

Essa lista requer algumas observações. Primeiro, o dicionário registra também uma forma derivada de "sem-cerimônia", ou seja, "sem-cerimonioso". Ao lado de "sem-vergonha", ele inclui quatro derivados, que são "sem-vergonhez", "sem-vergonheza", "sem-vergonhice", "sem-vergonhismo". Segundo, ele registrou "sem-gracice", mas não a forma primitiva "sem-graça". O termo "sem-serifa" é uma adaptação de "sans serifa" (diz-se de ou caráter tipográfico cujo desenho não apresenta remate nas hastes). Outros termos parecem não ser usados na linguagem quotidiana, tais como "sem-segundo" (sem par, sem igual, único) e "sem-termo" (sem-fim).
Aos termos da linguagem jornalística e do dicionário, poder-se-iam acrescentar outros que são efetivamente usados, em um ou outro nível ou variedade do português brasileiro. Entre eles temos os seguintes:

sem-gosto, sem-graça, sem-jeito, sem-sabor, sem-seca

O segundo deles (sem-graça) inclusive apareceu sob a forma derivada "sem-gracice" nos exemplos arrolados pelo dicionário, como acabamos de ver. Quanto a "sem-sabor", parece tão firmemente arraigado na língua que inclusive admite derivação, como "sem-saborão/sem-saborona". O último deles (sem-seca), foi registrado pelo primeiro autor no interior de Minas Gerais, município de Patos de Minas.
Alguém poderia argumentar que só se poderia afirmar que haveria um novo prefixo "sem-" produtivo no português brasileiro se tivéssemos mais exemplos. Apenas os que foram apresentados até aqui não seriam suficientes para tal afirmação. É preciso salientar, no entanto, que produtividade não é o mesmo que número de ocorrência. Uma construção pode ser considerada produtiva se permite construir novos termos de tempos em tempos. É exatamente o que ocorre com o novo prefixo "sem-". Nos dias atuais, podemos ouvir construções com esse prefixo a qualquer momento. Por exemplo, recentemente ouviu-se a expressão "sem-letra", referindo-se àqueles que não têm acesso ao letramento, que só vivem no mundo da oralidade, àqueles que não lêem nem escrevem.
Além do que acaba de ser dito, não se pode considerar apenas as construções separadas com hífen dos dados jornalísticos como sendo efetivamente palavras prefixadas. Dito de outro modo, os derivados mediante o prefixo "sem-" não se limitam àqueles que os jornais e um dicionário registram usando hífen. Há casos que, mesmo não tendo sido transcritos com um hífen separando o "sem-" do outro termo, pode-se discutir se são uma única palavra, ou meramente seqüências de "sem" mais alguma coisa. Nesse caso entrariam as seguintes construções, também extraídas pelo programa Contexto dos dados dos jornais brasileiros:

sem caráter, sem controle, sem efeito, sem exceção, sem fio, sem igual, sem importância, sem interrupção, sem limites, sem precedente, sem sentido, sem sucesso

Pelo simples fato de os jornais terem escrito todas essas expressões sem hífen não quer dizer que não sejam palavras prefixadas. Ao que tudo indica, estariam no mesmo caso dos demais exemplos do dicionário e dos jornais. Tanto que são combinações fixas, que sempre ocorrem juntas. Outras construções têm um caráter mais ambíguo ainda. As que se vêem logo a seguir ocorrem freqüentemente juntas. No entanto, não temos tanta certeza se são efetivamente palavras prefixadas ou se se trata de uma construção com a preposição "sem" seguida de um substantivo ou de um infinitivo (que tem valor de substantivo).

sem ação, sem alternativa, sem ânimo, sem chance, sem condição, sem data, sem dúvida, sem fronteira, sem permissão, sem fundo, sem moral, sem parar, sem pestanejar, sem problema, sem rodeio, sem sombra de dúvida, sem vida

Pode ser que alguma delas seja apenas aquilo que em alemão se chama "feste Verbindungen", ao pé da letra "ligações fixas", ou seja, palavras que ocorrem freqüentemente juntas. Isso vale sobretudo para "sem sombra de dúvida", que parece ser uma expressão idiomática.
Àqueles que têm dificuldade em encarar "sem-" como prefixo, gostaríamos de remeter ao interessantíssimo trabalho de Bernard Pottier (cf. Pottier 1962) de final da década de cinqüenta e começo da de sessenta. Ele demonstrou que grande parte dos prefixos das línguas românicas (ele trabalhou basicamente com o francês, o espanhol e o português) provêm de preposições latinas. O que é mais, os prefixos preservam o signifidado básico da preposição de origem. Aliás, no próprio latim isso já acontecia. Assim, de seria o mesmo em decedere de vita e de sella exsiluit em latim (p. 276-277). Do mesmo modo, em francês o de inicial de decouler (decorrer, correr de) é o mesmo de couler de la montagne (correr da montanha), o que ficaria mais explícito se mudássemos a ordem das palavras para de [la montagne] couler (p. 198). A preposição de valor oposto ad tem aproximadamente o mesmo significado nas suas duas ocorrências de adesse ad urbem. O mesmo vale para o português. O de é aproximadamente o mesmo nas duas ocorrências de deduzir de, assim como a preposição a e o a inicial do verbo também são basicamente os mesmos em anexar uma folha a um texto. Segundo Pottier (1962) isso se deve ao fato de os prefixos praticamente não se distinguirem das preposições, palavras que por natureza indicam essas relações, no caso de espacialidade, temporalidade e noção.
O mesmo está ocorrendo no caso do novel prefixo "sem-" do português brasileiro. Ele mantém o significado original da preposição, que é de privação. Sua ocorrência em "sem-terra" tem o mesmo significado básico que a preposição que ocorre na frase "João chegou sem sua esposa".
Passemos agora ao nosso segundo objetivo, ou seja, apresentar uma proposta de interpretação ecolingüística aos fatos expostos acima. Primeiro, definamos ecolingüística. Como já fora proposto pelo pioneiro Einar Haugen, o objeto dessa disciplina é "o estudo das interações entre língua e seu meio ambiente". O autor acrescentou que "o meio ambiente de uma língua é a sociedade que a usa como um de seus códigos" (Haugen 1972: 325). Hoje sabe-se que o meio ambiente de uma língua compõe-se do meio social e do natural (Fill 1993). Aqui interessa apenas a relação entre a língua e o meio ambiente social.
Da perspectiva da influência do meio ambiente social na língua, podemos tirar duas conclusões sobre o uso do prefixo "sem-" pelos jornais brasileiros bem como em outros níveis de linguagem. Comecemos por "sem-terra" e "sem-teto". Como vimos acima, a primeira foi a que mais ocorreu (6 vezes), o que é reflexo de importante momento da vida política brasileira, em que uma categoria de pessoas despossuídas se arregimenta em uma associação (MST = Movimento dos Sem-Terra) para reivindicar um pedaço de terra em que possam viver. A expressão se tornou bastante conhecida devido à ampla cobertura que a imprensa tem dado aos atos praticados pelo movimento. Isso é resultado da condição de miserabilidade em que vivem grandes contingentes da população brasileira.
Quanto à expressão "sem-teto", ocorreu apenas três vezes. Acontece que ela praticamente se duplica na expressão sinônima "sem-casa", que também ocorreu três vezes nos mesmos textos. Vê-se, portanto, que a condição de não ter onde morar rivaliza com a de não ter terra para lavrar, reforçando a conclusão quanto á pobreza de considerável parcela do povo brasileiro. Tanto em um quanto em outro caso, o uso da expressão reflete objetivamente fatos do meio ambiente social em que a língua é usada.
Uma segunda conclusão tem a ver com a permeabilidade que a sociedade brasileira tem a expressões de origem inglesa (estadunidense, mais precisamente). Estamos convictos de que a construção "sem-teto" se fixou no português brasileiro também devido à existência de "homeless" em inglês. O que é modismo lá, e se lexicaliza, vira modismo cá, e se lexicaliza, quando já não vem pronto de lá.
Se queremos imitar os americanos, por que não assumimos que temos um prefixo a mais na língua? Com isso teríamos recursos morfológicos para traduzir praticamente tudo que termina por "-less" no inglês. Por exemplo, no âmbito dos estudos lingüísticos, um falante de inglês pode usar a expressão "grammarless" que, até recentemente, não conseguíamos traduzir a não ser por torneios sintáticos. Admitindo o novo prefixo "sem-", teríamos o equivalante "sem-gramática". Essa seria uma imitação positiva, pois faria uso de recursos internos do próprio português. O que se admira é que as mesmas pessoas que não titubeiam em usar anglicismos a toda hora em sua fala em português têm restrições quanto ao uso de algo castiçamente e legitimamente formado dentro da própria língua.

Bibliografia
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