segunda-feira, 25 de junho de 2012

Linguística Ecossistêmica


NOTA:

Este texto está publicado com o mesmo título, em formato revisto e ampliado, em
Ecolinguística: Revista Brasileira de Ecologia e Linguagem, v. 01, n. 01, p. 47-81, 2015, disponível em:

Ecolinguística
:
Revista Brasileira de Ecologia e Linguagem
, v. 01, n. 01, p. 47
-
81
, 2015
.
https://periodicos.unb.br/index.php/erbel/article/view/9967/8800

No site em inglês https://ecosystemic-linguistics.blogspot.com.br encontram-se os textos "Ecosystemic linguistics I" e "Ecosystemic linguistics II", que apresentam a Linguística Ecossistêmica de forma um tanto diferente.

quinta-feira, 29 de março de 2012

Emergência dos pronomes pessoais na ecologia da interação comunicativa

Nesta postagem vou tentar mostrar que as pessoas do discurso, mais conhecidas como "pronomes pessoais", são parte integrante da ecologia da interação comunicativa. A ecologia da interação comunicativa se insere na Ecolinguística, que tem sido definida como sendo o estudo das relações entre língua e meio ambiente, que é de natureza tripla, ou seja, existem o MA natural, o MA mental e o MA social da língua, assunto discutido em postagens anteriores. Para mais detalhes sobre a Ecolinguística em geral e sobre a própria ecologia da interação comunicativa em especial, pode-se consultar (Couto 2007) bem como as referidas postagens.
De acordo com o meu modo de ver, os chamados "pronomes pessoais" não têm sido tratados de modo adequado pelas gramáticas tradicionais. Entre os inúmeros problemas que se poderiam levantar, temos o fato de considerarem 'nós' como plural de 'eu' e 'vós' como plural de 'tu'. Outro problema seria o considerarem 'ele' e derivados (ela, eles, elas) também como "pronomes". Um terceiro problema é o fato de considerarem os pronomes como substitutos dos nomes, como já dá a entender a própria palavra 'pronome'. No que tange à definição que dão a cada uma das três formas básicas, não há muito a criticar. Cunha (1970: 200), por exemplo, afirma que 'eu' designa a pessoa que fala, 'tu' refere-se à pessoa a quem se fala e as demais quatro formas indicam de quem ou de que se fala. Até aí não há aparentemente nada a criticar. O problema começa quando o gramático em questão, de resto como todos os demais que o precederam, com raríssimas exceções, apresenta as conceituações inadequadas recém-vistas.
Uma das exceções é Ali (1969: 61), que afirma que "Pronome é a palavra que denota o ente ou a ele se refere, considerando-o apenas como pessoa do discurso". Ali continua salientando que "Pessoas do discurso se chamam o indivíduo que fala, o indivíduo com quem se fala e a pessoa ou cousa de que se fala". O mais importante aqui é, porém, o salientar ele que "o plural de nós significa, não eu + eu, e sim eu + tu, eu + ele (ou ela), eu + vós ou eu + eles (ou elas)". Fernandes (1940: 172-174) defende a mesma ideia, acrescentando que "o sentido da forma nós não admite que a possamos considerar como plural de eu, sob pena de falsearmos a noção de pluralização". Ele conclui afirmando que "identicamente, também vós não é, em rigor plural de tu".
Esse procedimento recua pelo menos a meados do século XVII. Em 1660, saiu a Grammaire générale et raisonnée, de Arnauld; Lancelot, de que tenho a edição de (1830/1969), prefaciada por Michel Foucault. Nessa obra clássica, pelo menos se dá uma razão para se chamarem os "pronomes" como substitutos de nomes, de substantivos. Assim, os homens "reconheceram que era frequentemente inútil e de mau gosto nomearem-se a si mesmos. Por isso, introduziram o pronome da primeira pessoa a fim de colocá-lo no lugar do nome de quem fala: Ego; moi, je" (eu). Eles continuam dizendo que "para não se sentirem obrigados a nomear aquele a quem se fala, consideraram conveniente denominá-lo por uma palavra a que chamaram de pronome da segunda pessoa: Tu, toi ou vous" (tu, você). Por fim, "a fim de não serem obrigados a repetir os nomes das outras pessoas ou das outras coisas de que se fala, eles inventaram os pronomes da terceira pessoa: Ille, illa, illud; il, elle, lui, etc." (ele, ela etc.) (p. 43).
Quem viu a real posição dos "pronomes pessoais" não foi um gramático nem sequer um linguista, mas o filósofo e pai da semiótica moderna Charles Sanders Peirce. Ao falar de expressões indiciais no ensaio "O ícone, o indicador e o símbolo", em uma nota de rodapé ele afirmou que "não há razão para dizer que 'eu', 'tu', 'este', 'aquele' se colocam no lugar de nomes; eles apontam coisas, da maneira a mais direta possível". Continua dizendo que o nome é que "é um substituto imperfeito do pronome", uma vez que "um nome [...] não indica o objeto que denota; e quando se emprega um nome para referir aquilo a propósito de que se está falando, confia-se na experiência do ouvinte para suprir a incapacidade de o nome atuar como o pronome de imediato atua" (Peirce 1972: 122-123).
Um linguista que tratou do assunto de uma perspectiva que se assemelha à da Ecolinguística é Émile Benveniste. Em Benveniste (1995: 277-283), ele chama 'ele' de não pessoa que, quando muito, entraria em uma "representação sintática", ou seja, aquilo que outros chamam de referência anafórica. Ele deixa implícito que 'ele' pode ser qualquer coisa ou pessoa de que se fala, inclusive o emissor (eu) e o receptor (tu). O locutor pode falar até inclusive de si mesmo, como 'me' e 'mim', e do ouvinte, como 'te' e 'ti'. Tanto que Benveniste afirma que ''ele' pode ser substituído por qualquer outra palavra, sobretudo nominal, da língua, ao passo que 'eu' e 'tu' não. Em cada ato de interação comunicativa eles são únicos e insubstituíveis. Mais próximo de nós, temos Roncarati (2010), que fala em "cadeia de referência", ou "cadeia referencial", equivalente aproximado da correferência de outras abordagens. Assim, em um texto, posso usar "João" em uma primeira aparição, mas, "ele" em uma segunda, "o" em uma terceira (ou até mesmo em uma segunda), "lhe" em uma quarta e assim por diante. O referente permanece sempre o mesmo. O uso de "ele", "o" e "lhe" se deve apenas a razões sintáticas. Quando os usa, porém, o narrador está pensando sempre na mesma pessoa ou coisa. Por outras palavras, quando usa "ele", "o" ou "lhe" não os associa à palavra "João" mencionada anteriormente na frase, mas a uma pessoa que essa palavra designa.
Os "pronomes" em tela são actantes da ecologia da interação comunicativa e respectivos circunstantes, como os chamados "pronomes de terceira pessoa". No seu estudo, normalmente, se tem partido do esquema da comunicação, simplificado pelos linguistas como se vê logo abaixo.

      C
   /      \
E--M--R

Esse esquema mostra que para uma mensagem (M) enviada por um emissor (E) a um receptor (R) ser entendida tem que estar formulada em uma linguagem ou código (C) comum a E e R. Esse modelo é por demais estático, dando a entender que a interação comunicativa é um circuito fechado, fato visível também na formulação de Saussure (1983: 19), que fala em "circuito da fala". O problema é que tanto Saussure quanto todos os estruturalistas que seguiram sua genial proposta veem a língua como um sistema de regras fechado, estático, considerando a "fala" como mera realização hic et nunc desse sistema. Para essa visão parcial da linguagem em geral, o modelo recém-visto é suficiente. Acontece que, como o também estruturalista Eugenio Coseriu salientou, a língua é basicamente interação, ela é o como os membros da comunidade interagem entre si verbalmente (Coseriu 1967). Portanto, o modelo é inadequado e insuficiente.
Para o que aqui interessa, essa concepção de língua como atividade, que já existia em Humboldt (para ele ela era 'enérgeia' não 'ergon'), pode ser contemplada partindo do próprio modelo de comunicação dos engenheiros da comunicação, contanto que levemos em conta mais dois componentes que eles próprios incluíam, mas que os linguistas ignoraram. Trata-se da fonte (FO) e do destino (DE) da mensagem, como se pode ver em Shannon & Weaver (1949: 34). Com isso, o modelo anterior é substituído pelo seguinte:

               C
           /        \
FO---E--M--R---DE

Um dos exemplos dado pelos próprios engenheiros é o de um teletrama que alguém (FO) quer enviar a um amigo distante (DE). Ele vai a uma agência dos Correios e entrega o texto a um funcionário (E) que o envia em forma codificada a outra agência dos Correios em que outro funcionário (R) o decodifica e envia ao destinatário (DE) final do telegrama, embora hoje em dia isso talvez já não aconteça exatamente assim.
O que importa no momento é que esse modelo contempla todos os atores (reais e/ou potenciais) de uma interação comunicativa. O emissor da mensagem é 'eu' e o receptor é 'tu'. A fonte (FO) corresponde àquela pessoa ou pessoas que estão com o emissor ou falante, ou que estão de algum modo associadas a ele. O destinatário (DE) corresponde a quem está junto com o receptor, ou está associado a ele de algum modo. Com isso, FO equivale a um primeiro 'ele', aquele que está com o emissor, ou seja, ELE1, enquanto que DE equivale ao 'ele' que está com o receptor, o ELE2. Resumidamente, temos as seguintes equivalências até agora:

eu --- E
tu --- R
ele -- FO, DE

Como o emissor ou falante é o centro da interação comunicativa, ele pode juntar (e junta) outra ou outras pessoas a si mesmo. Quando ele se dirige ao receptor ou ouvinte incluindo o ELE1, diz não mais 'eu', mas 'nós'. Trata-se do 'nós' exclusivo, uma vez que não inclui o ouvinte. Se ele incluir o ouvinte (R), mesmo excluindo ELE1, teremos o 'nós' inclusivo. Mas, a forma 'nós' pode referir-se a outras pessoas, ou conjunto de pessoas, tanto actantes quanto circunstantes. Elas estão apresentadas nos exemplos de (1).

(1)
(a) eu + ELE1 = nós1 exclusivo (exclui o ouvinte)
(b) eu + tu = nós2 inclusivo (inclui o ouvinte)
(c) eu + ELE2 = nós3
(d) eu + ELE1 + ELE2 = nós4
(e) eu + tu + ELE1 = nós5
(f) eu + tu + ELE2 = nós6
(g) eu + tu + ELE1 + ELE2 = nós7

Levando-se em conta que o 'ele' que está com o falante e o que está com o ouvinte podem ser também uma coisa (eu e o que trago comigo, tu e o que trazes contigo), constatamos que a forma 'nós' pode se referir a pelo menos sete pessoas e/ou coisas diferentes. Normalmente, não nos damos conta dessas diferentes significações que o português sempre expressa por 'nós'. No entanto, em algumas línguas há formas diferentes para referentes distintos. O tupi e o guarani têm a forma 'oré' para o 'nós' exclusivo e 'jandé' para o 'nós' inclusivo. No crioulo inglês da Papua-Nova Guiné conhecido como tok pisin, há outras possibilidades, que examinaremos mais abaixo.
A ideia de que tanto EU quanto TU têm ao seu lado aqueles/aquilo que lhes diz respeito é explicitada em muitas línguas do mundo. De acordo com Alexandre Timbane, no grupo linguístico tsonga "Cada indivíduo é representante (imagem) do seu grupo social. Quer dizer, quando se fala com um ronga, nele reflete-se a cultura, os hábitos, os costumes e língua do seu povo. É neste sentido que se pode dizer que cada um carrega o seu grupo étnico, seu grupo linguístico donde adquiriu as regras de comportamento em sociedade" (Timbane 2014, p. 100).
O fato de 'vós' não ser mero plural de 'tu' (não se refere a 'tu + tu') se justifica pelos mesmos motivos, vale dizer, 'vós' pode se referir a diversas combinações de participantes e/ou circunstantes da interação comunicativa. A primeira e mais óbvia é "tu + ELE2". Em (2) temos todas as três possibilidades combinatórias de tu, ou seja, aquelas que são dadas pela ecologia da interação comunicativa. Note-se que 'tu' sempre aparece, pois é o "pronome de segunda pessoa" por excelência.

(2)
(a) tu + ELE2 = vós1
(b) tu + ELE1 = vós2
(c) tu + ELE2 + ELE1 = vós3

Provavelmente por 'tu' só emergir quando proferido por 'eu', ou seja, por ser secundário relativamente a 'eu', ele tem, no máximo três referentes, contra os sete de 'eu' que, como veremos mais abaixo muitas são implementadas em outras línguas, como o tok pisin.
Por fim, temos a forma 'ele'. Como ela indica aquele(a), aqueles(as) ou aquilo de que se fala, isto é, ao assunto do diálogo, seus referentes são em número infinito, uma vez que podemos falar de qualquer coisa, de tudo, inclusive de 'eu' e de 'tu', como já observado acima. Mas, pelo menos dois referentes emergem naturalmente fa ecologia da interação comunicativa. Quando o falante profere a forma 'ele', pode estar se referindo a ELE1 ou a ELE2, como em (3), abaixo. Se proferir a forma de plural 'eles', pode estar se referindo, em primeiro lugar, a ELE1 + ELE2, exemplificado em (3c). Pode estar se reportando também a dois ou mais ELE1 (3d), a dois ou mais ELE2 (3e), a dois ou mais ELE1 + ELE2 (3f), a dois ou mais ELE2 + ELE1 e assim por diante. Sempre que se tratar de mais de um ELE, os referentes serão codificados pela forma plural 'eles'. Sinoticamente, temos (o "etc." mostra que as possibilidades são em aberto, tendendo ao infinito):

(3)
(a) ELE1 = ele1
(b) ELE2 = ele2
(c) ELE1 + ELE2 = eles1
(d) ELE1a + ELE1b = eles2
(e) ELE2a + ELE2b = eles3
(f) ELE1 +ELE1a + ELE2 = eles4
(g) ELE2 + ELE2a +ELE1 = eles4
(h) ELE1a + ELE1b +ELE2n + ELE2a + ELE2b + ELE2n
etc.

A flexão de feminino 'ela' e respectivo plural 'elas' não apresentam problema nenhum. A fórmula é a mesma para 'ele' e 'eles'. As flexões de feminino e plural são algo que acontece com qualquer substantivo, por razões meramente sintáticas que nada têm a ver com o conteúdo da mensagem. Isso é um forte argumento em prol da interpretação dessa forma "pronominal" como sendo um nome.
Segundo as teorias sintáticas, no texto, 'ele' e derivados podem referir-se aparentemente a um substantivo já mencionado, como acontece na relação anafórica. Vejamos os exemplos (4).

(4) Nossa escola contratou 'nova professora' de Português. 'Ela' já se apresentou aos alunos, que 'a' acolheram muito bem, dando-'lhe' as boas vindas.

As teorias linguísticas que veem a língua como basicamente um sistema de regras, consideram que, nesse oração, 'Ela' se refere a 'nova professora', 'a' se refere a 'Ela' e 'lhe' se refere a 'a'. No entanto, essa é uma interpretação meramente sintática. Tenho certeza de que nenhum falante de português que proferir esse enunciado achará que está se referindo a 'Ela' ao dizer 'a', nem se reportando a 'nova professora' ao dizer 'Ela'. Em todos os casos estará sempre se referindo a uma pessoa específica, no caso a pessoa que foi contratada como professora de português na nossa escola.
No exemplo que acaba de ser discutido não fica claro se 'ela' se refere a ELE1 ou a ELE2, porque, como acabamos de ver, 'ele/ela' representa um ou outro deles, dependendo da configuração da ecologia da interação comunicativa em questão. Em outros casos, porém, o referente de 'ele' (ou de 'ela') fica bem claro. Vejamos o exemplo (5).

(5) 'Minha esposa' é professora. 'Ela' leciona Português.

Não há dúvida nenhuma de que se trata de ELE1 (aquele que está do lado do falante), sendo que na oração (6) 'ela' e 'a' indicam inequivocamente ELE2 (aquele que está do lado do ouvinte).

(6) 'Tua esposa' á muito simpática. Ontem 'ela' convidou a minha a visitá-'la' no fim de semana

Se juntarmos as duas formas, temos o que se vê em (8), em que o plural 'elas' indica claramente ELE1 + ELE2.

(7) 'A minha esposa' e 'a tua' se dão muito bem. 'Elas' sempre preparam aulas juntas

As demais possibilidades são infinitas, como já dito. Entretanto, valeria a pena dar pelo menos mais dois exemplos. Em (9) temos um 'eles' que indica ELE1a + ELE1b, enquanto que em (10) o 'eles' se reporta a ELE2a + ELE2b. No primeiro caso, trata-se de mais de um ELE que estão do lado do falante; no segundo, trata-se de mais de um ELE estão com o ouvinte.

(8) Eu tenho um 'cachorro' (ELE1a) e um 'gato' (ELE1b). 'Eles' estão sempre brigando
(9) Tu tens um 'cachorro' (ELE2a) e um 'gato' (ELE2b). 'Eles' nunca brigam

A forma brasileira 'você' e respectivo plural 'vocês' introduz uma pequena complicação no quadro esboçado acima. No entanto, a primeira forma é pura e simplesmente um substituto de 'tu' e a segunda de 'vós'. Vale dizer, o referente é o mesmo, é dado pela interação comunicativa, que é universal. A diferença entre 'você' e 'tu' está apenas na aparência, no significante, uma vez que o significado é o mesmo, a pessoa com quem se fala. É bem verdade que o plural de 'você' se forma como o plural de qualquer forma nominal (substantivo e adjetivo), mediante o acréscimo de um -s. No caso de 'tu" e 'vós', são simplesmente dois itens lexicais independentes que se relacionam só semanticamente, ao passo que 'você' e 'vocês' se relacionam também gramaticalmente ou, de modo mais específico, morfologicamente.
Pode ser que haja duas explicações para o que se passa com 'você/vocês'. Primeiro, o mero acréscimo de -s à forma de singular seria um modo menos marcado de se expressar a pluralidade, uma vez que se trata provavelmente da regra mais geral da morfossintaxe portuguesa. Essa regra diria simplesmente: "Para formar o plural dos nomes, acrescente -s a eles, como terminação". Segundo, pode ser que a etimologia também tenha alguma influência no processo. Sabemos que 'você' vem de algo como 'vostra mercede', que é um sintagma nominal, portanto, passível de pluralização mediante acréscimo de -s. Historicamente, ela passou por formas intermediárias como 'vosmecê', 'vos'cê' ('vancê') até chegar a 'você'. Posteriormente, houve a redução a 'ocê' e até a 'cê'. A forma ocê é mais usada na zona rural, alternando com cê, enquanto que nas zonas urbanas se usa mais cê, frequentemente em alternância com você.
O crioulo inglês da Papua-Nova Guiné, conhecido como tok pisin, lexicaliza mais algumas das possibilidades mencionadas. O "eu" simples é mi. Para o nosso 'nós' a língua tem três formas. Para expressar "eu + ELE1" (10a) ou "eu + ELE2" (10c), temos mitupela. Para "eu + ELE1 + ELE2" (10d) temos mitripela. Quanto a "eu + tu + ELE1 + ELE2" (10g), dá 'yumi' ou 'yumipela'. As formas de (10a), (10c) e (10b) são chamadas de exclusivas, uma vez que excluem o ouvinte (tu). As formas que incluem o ouvinte (tu), as inclusivas, são yumitupela, que lexicaliza a possibilidade (10b), ou seja, "eu + tu". A possibilidade "eu + tu + ELE2" (10f) é representada em tok pisin por yumitripela. Repitamos as possibilidades de (10), incluindo as formas do tok pisin. Vê-se que a língua só não lexicaliza a possibilidade (10e).

(10)
(a) eu + ELE1 = nós1 = 'mitupela' (exclusivo; exclui o ouvinte)
(b) eu + tu = nós2 = 'yumitupela' (inclusivo; inclui o ouvinte)
(c) eu + ELE2 = nós3 = 'mitupela' (exclusivo, exclui o ouvinte)
(d) eu + ELE1 + ELE2 = nós4 = 'mitripela'
(e) eu + tu + ELE1 = nós5
(f) eu + tu + ELE2 = nós6 = 'yumitripela'
(g) eu + tu + ELE1 + ELE2 = nós7 = 'yumi' ou 'yumipela'
(h) eu = 'mi'

As formas de segunda pessoa também lexicalizam muito mais das possibilidades teóricas do que o que se vê no português ou nas línguas ocidentais em geral. Considerando que "tu" simples é yu, "tu + ELE2" (11a) ou "tu + ELE1” (11b) correspondem a yutupela. A (11c), ou seja, "tu + ELE2 + ELE1" corresponde o yutripela tok pisin. Se a essa última possibilidade (11c) acrescentarmos mais um ELE1a ou um ELE2a, teremos yupela, como em (11d).

(11)
(a) tu + ELE2 = vós1 = 'yutupela'
(b) tu + ELE1 = vós2 = 'yutupela'
(c) tu + ELE2 + ELE1 = vós3 = 'yutripela'
(d) tu +ELE2 + ELE1a + ELE2a = vós3 = 'yupela'
(e) tu = 'yu'

As formas que as gramáticas tradicionais chamam de "pronomes de terceira pessoa" também são mais complexas do que as das línguas ocidentais. A forma simples "ele/a" é representada como em (de "them"). Juntando ELE1 com ELE2 (12c) temos o tupela tok pisin. Se a esses dois acrescentarmos mais um ELE (ELE1a ou ELE2a), temos tripela, como em (12f) e (12g), respectivamente. Juntando-se mais de um ELE, de qualquer tipo como em (12h), teremos ol (de "all"). Para mais detalhes sobre os pronomes no tok pisin, pode-se consultar Laycock (1970) e Siegel (s/d), entre outros.

(12)
(a) ELE1 = ele1 = 'em'
(b) ELE2 = ele2 = 'em'
(c) ELE1 + ELE2 = eles1 = 'tupela'
(d) ELE1a + ELE1b = eles2
(e) ELE2a + ELE2b = eles3
(f) ELE1 +ELE1a + ELE2 = eles4 = 'tripela'
(g) ELE2 + ELE2a +ELE1 = eles4 = 'tripela'
(h) ELE1a + ELE1b +ELE2n + ELE2a + ELE2b + ELE2n = 'ol'
etc.

Enfim, ecolinguisticamente, não há nenhum mistério nos pronomes pessoais. Quando os procuramos onde eles naturalmente estão, encontramo-los como eles realmente são. No caso, eles são os actantes e os circunstantes do ato de interação comunicativa, que se dá no cenário da ecologia da interação comunicativa.
Deve haver línguas entre as mais de seis mil que existem no mundo alguma ou algumss que lexicalizem outras possibilidades. Essa é uma pesquisa que valeria a pena ser feita, mas que demandaria uma grande equipe internacional de investigadores que dispusesse de um generoso financiamento. De qualaquer forma, aqui ficam essas poucas notas como sugestões para investigações mais pormenorizadas sobre os pronomes, da perspectiva da ecologia da interação comunciativa.

Referências bibliográficas
Ali, Said. 1969. Gramática secundária da língua portuguesa. São Paulo: Edições Melhoramentos, 8a ed.
Arnauld & Lancelot. 1969. Grammaire générale et raisonnée. Paris: Republications Paulet (1a ed., 1660).
Coseriu, Eugenio. 1967. Teoría del lenguaje y lingüística general. Madri: Editorial Gredos, 2a ed.
Couto, Hildo Honório do. 2007. Ecolinguística - estudo das relações entre língua e meio ambiente. Brasília: Thesaurus Editora.
Cunha, Celso. 1970. Gramática do português contemporâneo. Belo Horizonte: Editor Bernardo Álvares.
Fernandes, I. Xavier. 1940. Estudos linguísticos. Porto: Editora Educação Nacional Ltda.
Laycock, Donald C. 1970. Materials in New Guinea Pidgin. Canberra: Pacific Linguistics.
Peirce, Charles Sanders. 1972. Semiótica e filosofia. São Paulo: Editora Cultrix.
Roncarati, Cláudia. 2010. As cadeias do texto - construindo sentidos. São Paulo: Parábola.
Saussure, Ferdinand de. 1983. Curso de linguística geral. São Paulo: Editora Cultrix, 5a ed.
Shannon, Claude E. & Warren Weaver. 1949. The mathematical theory of communication. Urbana: University of Illinois Press.
Siegel, Jeff. s/d. Tok pisin. http://www.hawaii.edu/satocenter/langnet/definitions/tokpisin.html (28/3/2012)
Timbane, Alexandre António. 2014. Análise sociodiscursiva da “saudação” do grupo étnico-linguístico tsonga de Moçambique. Revista educação, cultura e sociedade v. 4, n. 2, p. 90-105. Disponível em:
http://sinop.unemat.br/projetos/revista/index.php/educacao/article/view/1724/1239  (26/10/2017).

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Por uma ecolexicografia

Nota: O texto a seguir esteve disponível na internet por algum tempo (ver URL no final desta postagem). Depois, foi retirado. Por isso, reproduzo-o. Independentemente de seu valor teórico e de sua qualidade, decidi incluí-lo aqui porque apresenta uma proposta de 'ecolexicologia' e 'ecolexicografia'. Quem se dedica à Ecolinguística é bom que dê uma olhada nele (Hildo Couto).
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POR UMA ECOLEXICOGRAFIA, por Manoel Soares Sarmento



Resumo: Esta é uma proposta de criação de dois novos campos da Linguística Aplicada e, mais especificamente, da Ecolinguística, a saber: a Ecolexicologia e a Ecolexicografia. Este artigo concentra-se em delinear os contornos ontológicos, epistemológicos e metodológicos respeitantes à Ecolexicografia.



Palavras-Chave: Estudos lexicais e terminológicos; Ecolinguística; Ecolexicologia; Ecolexicografia.



Abstract: This paper aims at presenting two new fields of Applied Linguistics, and specifically of Ecolinguistics, namely, Ecolexicology and ecolexicogaphy. It proposes ontological, epistemological and methodological bases to create Ecolexicography.



Key Words: Lexical and terminological studies; Ecolinguistics; Ecolexicology; Ecolexicography.



Este artigo procura fornecer alguns dados de uma pesquisa que vem sendo realizada na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Campus de Jequié, assunto também de um estágio de Pós-Doutorado realizado no Centro de Estudos Lexicais e Terminológicos - LEXTERM, do Departamento de Linguística, Línguas Clássicas e Vernácula, da Universidade de Brasília. O intuito básico é apresentar uma subárea da Ecolinguística, a saber, a ECOLEXICOGRAFIA, proposta primeiramente à Universidade de Graz, na Áustrìa, no ano de 2000 (cf. Sarmento 2000) e, posteriormente, dada a conhecer no livro Colourful Green Ideas (2002), da Peter Lang Verlag, Berna, Suíça, bem como na sociedade Terralingua, no seu boletim Langscape, número 20, aqui já bem mais aumentado. Seguindo, foi apresentada - juntamente com a proposta de criação de urna subárea congênere, a ECOLEXICOLOGIA -, ao Centro acima citado. A partir dos formadores destas subáreas, depreende-se que estou atuando no campo das inter-relações entre Linguística (léxico, "teorização sobrei" e elaborar a obra", ao qual se juntam a pragmática e a semântica) e Ecologia (a metáfora do ecossistema).
Revelo orgulho, alegria e compromisso ao assumir a proposta de criação desses dois subcampos da ecolinguística. Orgulho, alegria e compromisso porque nossa ciência tem de se ver às voltas seriamente, na realização de suas discussões e tarefas, com as palavras que usamos, a respeito dos efeitos que elas causam, quais as suas potencialidades para criar, enfraquecer, fortalecer, manter e destruir:
- o sistema interno da língua;
- a rede ecológica do ser humano, no que tange ao biológico, ao social, ao psicológico etc.;
- a rede ecológica dos outros organismos;
- e daí a uma rede mais ampla, a saber, do meio ambiente e planetária.
Os novos subcampos propostos foram previstos em um texto que enviei à Universidade de Graz, como já escrevi, durante o Simpósio Österreirische Linguistiktagung 2000: 30 Jahre Sprache und Ökologie. Nos abstacts apresentados ao Simpósio, trataram-se as seguintes ecopalavras: "ecológico', "ecologicamente", "Ecologia", "Ecolinguística", "ecossistema", "eco-alfabetização", "ecossemântiça", "ecogrupo", "não-ecológica", e dentre elas aparecem "ecolexicológico" e "Ecolexicografia", propostas para tratarem com palavras e suas relações com o meio ambiente, na acepção de "meditar sobre" e "gerar tecnologia para", que corespondem enquanto parentesco epistemológico aos estudos lexicais e terminológicos, desenvolvidos pela Lexicologia e pela Terminologia, bem como pela Lexicografia, pela Terminografia, pela Terminótica" entre outras. Neste artigo concentrar-me-ei mais detidamente na Ecolexicografia.
Apresentando algumas asserções que venho propondo, diria o seguinte:
1. Em primeiro lugar, parece-me que a Ecolexicografia tem de ser trabalhada a partir de uma perspectiva mais ampla que envolve uma Nova Mentalidade por parte de nós falantes do português e de outras línguas. Este "mais ampla" configura-se como uma tomada de posição a fim de realizar uma reviravolta nas nossas concepções quanto ao nosso lugar enquanto indivíduos e espécie pertencentes ao Planeta Terra, considerando a fundamentabilidade de tudo, à luz da plataforma da Ecologia Profunda, da ecofilósofo norueguês, Arne Naess. O pensamento dele pode ser compreendido como "relacional, não voltado apenas ao humano". Ou seja, uma Ecologia Rasa que trata apenas com coleta de dados, descrição e sua interpretação e útil - mas não suficiente, se não houver uma transformação íntima efetuada por nós humanos no campo pessoal, social, acadêmico, politico-financeiro etc. Envolve vivenciarmos uma tentativa de superar a separatividade que grassa na nossa cultura e que atua profundamente nas nossas atitudes internas e externas. Disso é exemplo um paradigma reducionista, mecanicista. Claro que ajuda em certos segmentos dos lidares humanos, mas tem-se mostrado que vem causando uma série de prejuízos, hierarquias perniciosas, domínios de uns sobre os outros de forma danosa, para não falar de um sentimento de esfacelamento, de se perceber e se sentir como "separado de". Esta é a razão pela qual advogo uma perspectiva integrativa, relacional, traduzível,por exemplo, nas concepções sistêmica, ecológica (e ecologizante) e holística. As concepções sistêmica e ecológica proveem um pano de fundo científico para se realizar essa mudança; a holística provê urna posição de cunho filosófico, e a concepção ecológica tradicional resgata aquilo que o Conhecimento Ecológico Tradicional vem cotidianamente realizando. Venho propondo um "ser-um-com", "ser-o", mais do que ser-parte-de".
2. Em segundo lugar, postulo o fato de que a filogenia da nossa espécie aponta para o domínio que adquirimos com o fogo, com a roda, com os artefatos, com a linguagem e com o pensamento e daí gerarmos dois caminhos: um para a sobrevivência e outro para a extinção. Este último é entendido em termos das hierarquias e preconceitos que erigimos - das quais o patriarcado, a submissão de um povo por outro, a extinção de espécie causada por nós, a exploração desenfreada das chamadas "riquezas/recursos naturais", em suma, uma dilapidação do Planeta, é testemunha. Mas mais ainda: há uma constante dilapidação da chamada "natureza humana", sendo que a espécie Homo sapiens sapiens, que é também Homo habilis e Homo faber, Homo loquens se torna, em muitos casos, Homo demens. Estes são ensinamentos a mim dados pela Ecologia Social, de Murray Bookchin, bem como pelas
fascinantes pesquisas paleontológicas da família Leakey.
3. Em terceiro lugar, percebemos que o próprio sistema linguístico, quando pensado e, um sistema autocontido, de per se, em muitos casos, sofre com a quebra de tais "elos integrativos" internos e reflete isso para o Planeta como um todo. Os exemplos de discurso que maximizam ações não-ecológicas são prova disso. A vertente dos estudos linguísticos chamada "formalista", útil como possa ser, tem enfatizado a língua como um fenômeno autocontido, de per se, diferente da perspectiva funcionalista, visto que enxergam a língua como uma semiose virtual que se atualiza numa semiose realizada num dado contexto de situação.
Mas, o que desencadeia o pensamento de postular uma Ecolexicografia?
A bem dizer, o surgimento ela Ecolinguística. Tomem-se alguns dados:
A Ecolinguística é uma subárea da Linguística, especificamente da Linguística Aplicada, que trata com as inter-relações entre língua e meio ambiente. Por entender que: "Ecolinguistics is a new branch of linguistics that investigates the role of language in the development and possible solution of ecological and environmental problems. [and] for this reason, some ecolinguists use the concept of the eco-system metaphorically to refer to the language world systems that they analyse with the help of concepts transferred from biological ecology", como nos lembra Rosalyn Frank, do Instituto de Estudos Bascos.
A Ecolinguística deve ter sido motivada por diversos discursos governamentais, religiosos, empresariais, burocráticos, filosóficos, científicos, do dia-a-dia, que incessantemente utilizam de informações que maximizam a destruição, a opressão, falta de felicidade, extinção de espécies, intenção de línguas, poluição, corrupção, empobrecimento. Um dos casos que este artigo sustenta - e a pesquisa como um todo - é que corremos riscos ao dizermos a respeito da Língua Portuguesa: "falar errado", "vícios de linguagem", "falante nativo" não sabe a sua língua", "a língua mais difícil do mundo" e tantas outras hierarquias de dominações e separações, tantos outros preconceitos, erros lógicos.
Mas talvez essa subárea da nossa ciência tenha sido educada e nutrida por Copérnico, quando ele vê que o nosso Lar e não mais do que um pequeno - maravilhoso - Mundo em um dos cantos da nossa gloriosa Galáxia, a Via Láctea. E, como tal, algo tem de ser feito para preservá-lo. Ou quando Descartes propõe uma nítida separação entre corpo e mente - e isso é uma batalha que os ecolinguistas encaram a todos os momentos, visto que essa filosofia profundamente evoca a possibilidade de negar as realizações mais caras do campo, a saber: a tentativa de pensar a língua humana como um fenômeno que se inter-relaciona com o meio ambiente. Essa negação pode ser pensada como uma disjunção entre seres humanos, mente, pensamento, língua, cultura e sociedade, corpo e o meio ambiente - e isso pode ser exemplificado pelo fato de pessoas ainda permanecerem insistindo em uma Ciência "neutra", "racional", "lógica", "objetiva", "matemática", como se aquele/aquela que gera tal conhecimento não fosse humano/humana em seu sentido mais profundo. Talvez tenhamos de nos lembrar de Charles Darwin e de São Francisco de Assis, quando visualizam nos pássaros só céu, no gado que está no campo, nas florestas cobertas de verde e no ar que respiramos, nossos irmãos e nossas irmãs. E temos ainda muito trabalho a desenvolver ao entendermos os problemas criados pelo especiecismo, crescimentismo, racismo, antropocentrismo etc., disseminados no Mundo por uma cultura negativa do -ismo:, como Michael Halliday advertiu (Cf. Fill 1998).

Surgimento Localizado da Ecolinguística
Os pontos escritos anteriormente podem ser entendidos como uma tentativa de delinear um possível contorno para as ideias e eventos que devem existir previamente, a fim de trazer à luz a Ecolinguística. Contudo, em termos de localização no tempo, sua origem pode ser traçada na década de 70 quando Einar Haugen (Professor Emérito de Estudos Escandinavos) publica A Ecologia da Língua, na Stanford University Press, propondo tratá-la como um fenômeno ecológico, a saber, tratando-a como interações entre qualquer língua e o meio ambiente. Mais tarde, em uma conferência em Tessalônica, Grécia, Michael Halliday admoestou os/as linguistas a não ignorarem o papel de seu objeto de estudo e o crescimento de problemas ambientais, como Fill mais uma vez enfatiza no seu texto Ecolinguistics - State of the Art 1998. Mas não apenas no âmbito da Ciência, da Filosofia etc. se questionam essas coisas, o nosso dia-a-dia está cheio de tais indagações.
Porém, uma questão historiográfica impõe-se para discussão. Autores há que remetem o surgimento da Ecolinguística para muito antes da década de 70 com Haugen. Remete-se, por exemplo, a Sapir e Whorf ou a John Trim, em 1959, mas muito antes ainda.

Alguns Alvos de Investigação da Ecolinguística
Alguns alvos de investigação da Ecolinguística são:
- Tratar a língua em face aos sistemas biológicos diversos e similares.
- Realizar a crítica da língua, tanto em termos do par, língua e meio ambiente, bem como de uma crítica ao sistema interno da língua. Assim, o trabalho envolveria os estratos comumente discutidos da língua humana: o léxico, a morfologia a sintaxe, a semântica etc.;
- Ensinar eco-educação, ou seja: propiciar uma educação que se volte às questões ecológicas:,
- Realizar teorização do campo.
Naturalmente o escopo desse excitante campo de estudo engloba ainda:
- os problemas respeitantes às línguas em situação de perigo no Mundo;
- o problema crítico que envolve o/a último/a falante de uma língua;
- criação, uso, revitalização e morte de uma língua;
- a questão do preconceito linguístico;
- a questão do imperialismo linguístico;
- o planejamento linguístico;
- elaboração de textos, glossários etc. que tratem com o problema da língua e do meio ambiente;
- as questões que envolvem língua e paz;
- as questões sobre Ecolinguística e ensino;
- a questão da ecologização das línguas e suas contribuição para as Mentalidades;
- difusão e aplicação da Declaração dos Direitos Linguísticos.

De que Trata a Ecolexicografia, Afinal?
Neste momento, diria que a Ecolexicografia tanto pode ser uma ciência quanto uma técnica. No primeiro caso, ela cuida de teorizar sobre a obra ecolexicográfica; no segundo, ela traça os contornos macroestruturais e microestruturais da obra ecolexicográfica e produz tais obras.
A Ecolexicografia não se confunde com a reflexão e o labor lexicográficos empreendidos até o presente momento. Não se confunde, mas também não pode se afastar de tais reflexão e labor, visto que, como venho falando, não proponho uma cisão entre urna e outra. Proponho, sim, um alargamento dos estudos lexicais. E a proposta ganha corpo quando postulo as seguintes proposições:
PRIMEIRA PROPOSIÇÀO. Pensada em termos de dicionários, a Ecolexicografia não é dicionário de Ecologia, nem dicionário "comum" sobre fatos ecológicos. É uma reflexão e um Iabor que demandam a utopia sobre a qual venho falando. Relembrando:
Utopia PARA A SOBREVIVÊNCA INDIVIDUAL E PLANETÀRA.
E essa utopia toma-se clara ao propor a microestrutura do verbete ecolexicográfico, o qual não trata apenas com definição e abonação. O procedimento heurístico que norteia os verbetes ecolexicográficos é o seguinte:

Figura l. Microestruturua do verbete ecolexicográfico.

Nesta configuração a base da abra ecolexicográfia reside nos:
EFEITOS + RESULTADOS LÓGICOS, e isto remete-me à questão da SOBREVIVÊNCIA A que antes aludi, tema que vem me acompanhando desde 1994.
Os EFEITOS compreendem:
- Criativo (EC)
- Mantenedor (EM)
- Fortalecedor (EF)
- Enfraquecedor (EE)
- Destrutivo (ED)
E os RESULTADOS LÓGICOS compreendem, por exemplo, diversas palavras e expressões da Língua portuguesa, sendo que a minha utopia propor uma ecologização das "não-ecológicas". Vejam-se:
BINÁRIO DE OPOSTOS do tipo "lógica formal", sim, não:
Ecológico e exemplos:
- Interconexão hemisférica
- isoglossas
- Biodiversidade
- Individualidade
- Dialetos
- Aceitabilidade na língua
- Advocacia em defesa das línguas
- Filhos e filhas da Terra
- Rio de Heráclito
- Serenidade
- Paz
- Ser-um-com-o
- Tudo está ligado
Não-ecológico e Exemplos :
- Ferrugem cósmica
- Falante nativo não fala bem sua língua
- Quem são teus pais? ("Quem são tuas mães?")
- Americanos e estadunidenses
- Individualismo
- É negro e é...
- Animais
- Preconceito
- Relógio como metáfora de organismo
- Terra
- Universo
- Ambiente natural enquanto recurso
- Classismo
- Dualismo
- Apenas as pessoas educadas falam corretamente.

TERNÁRIO DE CONFLUÊNCIA, do tipo dialético:
Ecológico ou não-ecológico ao mesmo tempo, implicando o fato de que nem sempre a lógica de opostos é viável e requer-se urna lógica que engloba o "sim", o não e o talvez". Por exemplo, a palavra "lixo" não pode ser classificada como ecológica ou não ecológica; apenas as ações que dela advêm podem fazer uma classificação.
GRADIENTE, implica uma gradiência, uma escalaridade do tipo: "muitíssimo, muito, pouco, pouquíssimo, etc".
Grediência +++ <-> - - -
DIALÓGICOS, implica uma conexão do tipo "piscar um olho e mexer nas estrelas", muito bem ilustrado nas pesquisas sobre condições atmosféricas da Teoria do Caos, ou pelos estudos de não-localidade da Física Quântica.
SEGUNDA PROPOSIÇÃO. De outro modo, Ecolexicografia não se confunde com Terminologia ou Terminografia. Aquela trabalha com a noção de "Iíngua comum", ou seja, "não linguagem de especialidade", mas guarda claro parentesco com algo a que venho chamando, a partir da influência sobre mim exercida peio curso de Lexicografia e Terminografia, oferecido pela Profa Dra." Enilde Faulstich, da Universidade de Brasília, uma Ecoterminologia e uma Ecoterminografia. Se se aceita o fato de que é possível haver uma ecometalinguagem (por exemplo, uma ecomorfologia como postulada pela Escola de Estados Ecolinguísticos de Odense, na Dinamarca e que eu próprio falo em termos de ecossílaba, ecotexto, ecoagente, ecofone, ecopalavra etc.) ou ainda algo do tipo "que pode ser encarado por uma Ecoterminologia", por exemplo: cogito ergo sum, da Filosofia "ambientalismo profundo", na Ecologia, "análise crítica do discurso", na Linguística, que "ecofeminismo", em Política etc. e de que a "linguagem de especialidade" também pode ser encarada do ponto de vista da microestrutura antes aventada, então haveria um limite relativamente claro entre os estudos lexicais e terminológicos, de um lada, e entre as estudos ecolexicais e ecoterminológicos, de outro, mas com muitos pontos de contato. Um deles é a microestrutura do verbete.
TERCEIRA PROPOSIÇÃO. Outro ponto, sobre o qual já venho tocando, é a respeito dos significados que a base eco assumiu ao longo do texto. Não implica apenas o "lado positivo", mas toda a lógica que permeia as minhas propostas. Volto mais uma vez às lógicas atuantes e aos efeitos. Assim, eco não tem o significado apenas positivo de "contribui para a sobrevivência individual e planetária". Eco, na verdade, é um termo neutro para tratar com as lógicas e os efeitos antes aduzidos.
QUARTA PROPOSIÇÃO. Ainda diria que os dados de corpus com os quais a EcoIexicografia deve se ocupar têm de trazer implícito algo do tipo "efeitos eco", "sobrevivência". Se não selecionados a partir desse viés não podem ser observados, descritos e explicados ecolexicológica e ecoleixicograficamente. Ou seja, há uma hipótese prévia a circunscrever o âmbito de ação das subáreas.
QUINTA PROPOSIÇÃO. A Ecolexicografia não abandona os estudos lexicográficos (para não dizer Iexicológicos) empreendidos até agora: toma-os e alarga ar suas fronteiras ao propor uma microestrutura que se constrói, além daquele tradicional, nas LÒGICAS e EFEITOS, sobre os quais falei anteriormente.
SEXTA PROPOSIÇÂO. A tarefa da Ecolexicografia não é apenas observar, descrever e explicar palavras e expressões vistas a partir do viés eco, mas tomar posição sobre os efeitos e resultados lógicos que elas desempenham. Ou seja, estamos trabalhando não apenas com o significado de palavras e expressões, mas a questão dos seus usos, o que nos remete imediatamente ao campo da Pragmática Em suma, esta subárea propende mais naturalmente ao campo semântico e pragmático do que ao morfossintático e fonológico. Ou seja, é o estrato lexical encarado em termos de significados, usos e efeitos. E, se pensarmos que podemos contribuir com a discussão a respeito de ecologização de línguas humanas, ao nos situarmos claramente sobre os efeitos que a língua causa, então estamos no campo de dizer: "Isso é assim. Isso é assado. Faça. Não faça".

Questões Formuladas pela Ecolexicografia
As seguintes questões são formuladas pela Lexicologia e pela Lexicografia:
- Qual o papel das palavras no nosso Mundo, bem como: Como uma palavra pode criar, manter ou destruir um Mundo?
Por extensão, as seguintes questões são cabíveis:
- De que modo podem contribuir a Lexicologia e a Lexicografia vigentes para delinear os entornos da Ecolexicologia e da Ecolexicografia?
- De igual modo as nossas inúmeras teorias linguísticas.
- De igual modo, os outros conhecimentos intimamente ligados às duas áreas.
A partir do que seja uma "palavra" e uma "expressão", a Ecolexicologia se questionaria a respeito da possibilidade teórica e prática da existência de uma "ecopalavra" e de uma "eco-expressão" e também faria questões do tipo:
- Corno pode uma palavra ecologizar uma língua e contribuir para as Mentalidades?
- Qual o papel de uma ecopalavra de nosso Mundo e quais são as suas potencialidades para criar, manter, fortalecer, enfraquecer e destruir? E ainda:
- Uma ecopalavra pode vir a enfraquecer e destruir? Elas são sempre conduzentes à sobrevivência do nosso Mundo?
sendo que adviria daí outra pergunta:
- É possível um jogo textual do tipo "palavra - ecologizar", ou o termo verbal exige necessariamente uma "ecopalavra"?
Voltando-me às questões formuladas pela Ecolexicografia e pela Ecolexicologia, diria:
- Como alguém pode contribuir para promover palavras ecológicas?
- O que devem fazer os/as ecolexicólogos/as e ecolexicógrafos/as (e outros/as) com aquelas palavras que desempenham um papel não-ecológico no nosso Mundo?
- Deve haver algum tipo de monitoramento de palavras? Ou seja, as áreas devem apontam para uma Axiologia, uma tomada clara de posição frente àquilo que é "ecológico" ou "não-ecológico"? Quanto de normativo as áreas podem (devem) ser?

Resumo metodológico: Paradigmas, Teorias, Métodos, Técnicas e Semióticas Respeitantes à Ecolexicografia
PARADIGMAS GERAIS (PG}
1. Concepção Dialógica, e dai a Concepção Integrativa (DI)
2. Concepção Política, e daí a Concepção Vitalizadora (para a Sobrevivência), que caminham lado a lado com a Concepção Educacional e com uma Concepção sobre as Mentalidades, e daí a Proposta de Ecologização da Língua Portuguesa (PVEM)
APORTES NO CONHECIMENTO HMANO (ACH)
a) Linguísticos - Linguística Geral, Ecolinguística, Estudos Lexicais e Terminológicos (LING)
b) Ecológico - Ecologia Geral (ECO)
c) Integrativos - Multirreferencialidade, Sistemas, Dialógica, Holística (INITE)
d) Filosófico - Identidade, Alteridade, Dialética, Dialógica (FILO)
e) Político - Ecologia Social, Ecologia Profunda, Educação, Mentalidades (POLI)
f) Conhecimento Tradicional (TRAD)
CLÁSSIFICADORES ECOLICOGRÁFICOS
1. obra ecolexicográfica (SELG)
2. Palavras e expressões
SEMIOTIZADORES ECOLEXICOGRÁFICOS (SELG)
a) Definição (DEF)
b) Usos (USO)
c) Ações (AÇ)
d) Estados
e) Processos
f) Fenômenos
g) Sentimentos
h) Sensações
i) Efeitos (EFE)
CLASSIFICADORES LÓGICOS (CL)
a) BINÁRIO DE OPOSTOS (LBO)
EcoLógico (Ec)
Não-ecológico (N)
Ecologizante
Não-ecologizante
b) TERNÁRIO DE CONFLUÊNCIA
Ecológico e não-ecológico (EcN)/Ecologizante e não-ecologizante:
- - - Ação linguisticamente-dísparada (LD)
- - - Ação culturalmente-disparada (CD)
c) GRADIENTE
Gradiência +++ <-> ---
d) DIALÓGICO
EFEITOS
- Criativo (EC)
- Mantenedor (EM)
- Fortalecedor (EF)
- Enfraquecedor(EE)
- Destrutivo (ED)
ESPERA DAS VIVÊNCIAS E AÇÕES HUMANAS (EVAH)
- Científica
- Filosófica
- Artística
- Espiritual
- Emocional
- Etc.

Notas
[1] Desejando-se examinar algumas pesquisas ecolinguísticas, favor remeter ao seguinte endereço: <......>
[2] O diretório do <...> sobre ecologia profunda é extremamente útil. Confira-se: <...>
[3] Uma bibliografia compreensiva da trajetória científica da família Leakey pode ser encontrada na Internet no site <...>
[4] <...>
[5] Reporto-me neste momento a uma resenha feita por Kevin Hutchings, da University of Southern British Columbia, sobre o livro Green Writing: Romanticism and Ecology, Nova lorque, 2000, da autoria de James McKusick. Este é pioneiro nas discussões sobre as questões ecológicas elicitadas pelo movimento dos românticos. E o ponto interessante é que o autor cita como "precursores, progenitores, pensadores proto-ecológicos, ecologistas profundos" do movimento ecológico moderno os nomes do período romântico estadunidense e europeu. Cf. <...>. Porém, bem sabemos como o Romantismo, não só naqueles países, mas aqui no Brasil também prestou culto à chamada Natureza: o bucólico, o puro, o intocado, o selvagem, o inocente ... Continuando esta ligeira incursão histórica, v em do Monterrey Institute of International Studies, na pessoa de Leo van Lier:

"Early references to an ecological approach can be found in JohnTrim (1959) and[ Einar Haugen (1972). Haugen's list of concerns for an ecological linguistics is very broad, encompassing linguistic demography, language shift, dialectology, sociolinguistics, ethnolinguistics, and much more. Other researchers have continued this broad range of work (see Mühlhäusler 1996 for an overview). Recent publications include Makkai (1993), Mühlhäusler (1996), and Skutnabb-Kangas's monumental opus (2000). In most recent work there is a strong critical-theoretical and human rights perspective, focusing on language death, Linguistic genocide, Iinguistic human/educational rights, and language diversity. Other work analyzes the way the environment is talked and written about in the medìa, politics and business {see further the University of Graz Ecolinguistìc Website [<...>] and a number of contributions to FiIl and Mühlhäusler 2001).
A number of linguistic theories share family resemblances with ecological linguistics in several respects, including Harris's international linguistics, Halliday's systemic-functional grammar and social semiotics, and the work of William Hanks. In addition, work ìn situated cognition (Lave, Wenger), discursive psychology (Harre, Shotte, Kalaja), the psychology, philosophy and ecology of self (Neisser, Rosch, Tomasello, Gallagher and Shear)."
[6] Desejando-se consultar a Declaração, favor buscar o seguinte endereço eletrônico: <...>. Neste último temos a Declaração em alemão, aragonês, asturiano, bielorrusso, galego, japonês, nahuatl, russo, zapoteca, galês e inglês - não em português, o que me parece demandar por parte dos interessados e das interessadas em políticas linguísticas, a sua tradução. Já o site <...> apresenta-nos uma revisão sobre a Declaração e oferece-nos a possibilidade de lê-la em catalão, francês, inglês e espanhol.
[7] Isso basicamente começou em uma conferência que proferi, em 1994, na abertura de um Curso de Mestrado em Enfermagem, concentração em Saúde Pública, no Departamento de Saúde da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Campus de Jequié, em convênio com a UNIRIO. A conferência teve o título de Diálogo e Sobrevivência. Por esse tempo começo a levantar um corpus em Língua Portuguesa que me parece favorecer um fenômeno que chamo "ecologização ou desecologìzação da Língua Portuguesa". Hoje ele contém mais de 600 exemplos.
[8] Bang, J. Chr., J. Døør et al. (eds.). Language and Ecology. Eco-Linguistics. Problems, Theories and Methods. Odense; Bang, Jørgen Chr, & Jørgen Døør. "Eco-Linguistics: a Framework", in AILA 1993, 31-60; Døør, Jørgen &, Jørgen Chr, Bang. "Language. Ecology and Truth - Dialogue and Dialectics" in Fill (ed.) 1996, 17-26.

Referências bibliográficas
Acot, P. História da Ecologia. Rio de Janeiro: Campus, 1998.
Bookchin Murray. The Philosophy of Social Ecology. Montreal: Black Rose Books, 1990.
Faulstich, Enilde. Base Metodológica para Pesquisa em Socioterminologia. Brasília: UnB, 1985.
Fill, Alwin et al. Colourful Green Ideas. Bern: Peter Lang Verlag, 2002.
_______. "Ecolinguistics - State of the Art 1998". In AAA - Arbeiten aus Anglistik und Amerikanistik, Band 23, Heft 1. Tübingen: Gunter Narr Verlag, 1998.
Lamberti, Flávia Cristina Cruz. Da perspectiva tradicional à variação em terminologia. Dissertação de mestrado, Brasília, UnB.
Leakey. Charles. A evolução da humanidade. Brasília: Editora da UnB.
Oliveira, Ana Maria Pinto Pires, Aparecida Negri Isquerdo (org). As ciências do léxico: Lexicologia, Lexicografia,terminologia. Campo Grande: (UFMS, 2001);
Rocha, Sandra Lúcia Rodrigues. De uma abordagem funcionalista do léxico do grego antigo: para uma explicação lexicográfica. Dissertação de mestrado, Brasília: UnB, 2000.
Sarmento, Manoel Soares. "Ecolexicography: words and expressions we should live by". In Österreichische Linguistiktagung 2000: 30 Jahre Sprache und Ökologie. Graz: Graz Universität, 2000.
_______. "Ecolexicography: ecological and unecological words and expressions". In: CoÍourful Green Ideas. Fill, Alwin et al. Bern, Frankfurt, New York, London, Paris, Wien: Peter Lang Verlag, 2002.

(Confluências - Revista de Tradução Científica e Técnica, no 0, Maio de 2004, pp. 119-130, no endereço: