segunda-feira, 21 de outubro de 2013

As conjunções e as relações entre linguagem e mundo extralinguístico


Uma das primeiras conceituações de Ecolinguística afirma que ela investiga as relações entre língua e mundo. Para a Linguística Ecossistêmica, essas relações são o começo de tudo. Como no ecossistema biológico, ela investiga as relações entre organismos (indivíduo-indivíduo: comunicação) e entre qualquer indivíduo da população e o mundo (indivíduo-mundo: significação, referência). A segunda é objeto de estudo da semântica, e procura investigar o significado de palavras isoladas (substantivos, verbos etc.) e de enunciados e textos inteiros. Nós já investigamos a formação de palavras com os prefixos re- e des-, certos processos de formação de palavras compostas (partindo de sua história) e até das preposições espaciais, de cuja base onomasiológica emergiriam as temporais e as nocionais (relações abstratas), como vem demonstrando Bernard Pottier desde a década de sessenta do século passado. Enfim, até agora temos visto que tudo na linguagem tem a ver com o mundo extralinguístico, inclusive as preposições, como se pode ver em http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/7496/1/ARTIGO_EcologiaRelacoesEspaciais.pdf O objetivo da presente postagem é tentar mostrar que o único tipo de palavra que aparentemente não teria nada a ver com o mundo seriam as conjunções.
De acordo com Jerônimo Soares Barbosa, em sua Grammática philosóphica da lingoagem portugueza, de final do século XIX, em português existem 9 conjunções 'essenciais': (antiga), e, mas, nem, ou, pois, porém, que, se, a que se deveria acrescentar, talvez, embora, logo e todavia. A Grammaire générale et raisonnée de Port Royal (1969) menciona como exemplos de conjunções: et, non, vel, si, ergo, ou seja, 'e, não, ou, se, então' (primeira edição de 1660p. 102).
As próprias gramáticas normativas já sugerem isso ao afirmarem que as preposições indicam relações entre palavras (portanto, também entre os conceitos a que se ligam) e as conjunções relacionariam orações em um texto. Isso significa que as primeiras teriam a ver com “conceitos”, mas as segundas apenas com relações intratextuais. Pelo menos as “verdadeiras” conjunções nada teriam a ver com o mundo. Por exemplo, em Maria saiu, mas João ficou, a que no mundo se referiria mas? A palavra simplesmente mostra uma relação entre Maria saiu e João ficou. No caso, parece implicar que Maria saiu e João não saiu. O mas parece conter algo de negação, de privação, fato surpreendente. Como se pode ver em Cunha (1970: 391-397), grande parte das conjunções são meras variantes semasiológicas de um mesmo conteúdo, como mas, porém, contudo e todavia. Algumas podem ser convertidas em outras, dependendo da perspectiva em que o falante se coloque. Assim, Se João é mineiro, é brasileiro pode ser convertida em João é brasileiro porque é mineiro e em João é mineiro, logo é brasileiro. Enfim, como se trata de relações lógicas, vejamos o que dizem os lógicos sobre esse tipo de relação.
Do ponto de vista estritamente lógico, Hegenberg (1966: 44-51, 70-72) fala, inicialmente, de cinco “conectivos sentenciais”. São eles: 1) Negação (~ P), como em (a) João está fora x João não está fora, que seria ~(João está fora), lido como “Não se dá o caso de que ‘João está fora’”; 2) Conjunção (P.Q ou P; Q ou PÙQ), exemplicado com (a) Pedro é bom e João é inteligente; 3) Disjunção (PuQ) vel 'e/ou' (não exclusiv)/ aut 'ou' (exclusiva), ilustrado com (a) Pedro é bom ou João é inteligente; 4) Implicação (P®Q), como em (a) Se Pedro está com malária, ele precisa de quinino, (b) Se todas as flores deste vaso são rosas, e esta é uma flor do vaso, então esta flor é uma rosa; 5) Bicondicional, equivalência (P se e somente se Q; Se P então Q e se Q então P), como em (a) Pedro é bom se e somente se João é inteligente. Ele mostra que, partindo de '.' (e) e ® (implica), temos uma "espécie de linguagem 'básica'": a) P . Q eq. ~(P ® ~ Q); PuQ eq. ~P ® Q. Acrescenta que "isso evidencia que é possível 'operar' com dois conetivos 'básicos' , eliminando os demais. Com efeito, toda vez que surgir '.', poderemos usar a primeira equivalência, e toda vez que surgir 'u', empregaremos a segunda, eliminando a conjunção e a disjunção em favor da negação e do condicional. Recordando que o bicondicional é uma conjunção de dois condicionais, também esse pode ser eliminado" (p. 95). Acrescenta que "a escolha de '~' e '®' como 'básicos' é ditada por preferência ocasional. Também seria possível preferir um dos pares seguintes: ~., ~u como conetivos básicos, eliminando-se os restantes em seu favor". A demonstração é a seguinte: PuQ  eq. ~ (~P . ~ Q); P®Q  eq. ~ (P . ~ Q); P®Q  eq. ~ (P . ~Q) . ~ (Q . ~ P). Segundo o autor, “Scheffer, em 1930, mostrou a possibilidade de exprimir todos os conetivos em função de um único" (p. 95-96).
Falando do juízo, Maritain afirma que é “o ato do espírito pelo qual ele une quando afirma ou separa quando nega” (Maritain, p. 109). Isso significa que a negação é um tipo de disjunção. Ela diz que duas coisas não coocorrem: a presença de uma implica a ausência da outra e vice-versa. Como sabemos pela lógica formal, a negação é apenas uma relação entre proposições, no caso, uma relação de disjunção.
Maritain (1980) é mais detalhado ainda, embora de uma perspectiva bastante tradicional, na linha da metafísica. Inicialmente, ele fala de “conjunção”, “disjunção” e “condicional’. Ele apresenta os seguintes exemplos de conjunção: (1) Os valentes se sacrificaram e os covardes se enriqueceram (p. 127), (2) Pedro e Paulo morreram em Roma (p. 129), (3) Pedro e Paulo são amigos. De acordo com ele, "a proposição relativa reduz-se à copulativa: O homem, que vejo, corre”, que equivaleria a vejo um homem e ele corre (p. 132). Acrescenta que "em outros casos a proposição adversativa reduz-se à copulativa: Ele ri mas eu choro” é o mesmo que Ele ri e eu choro (p. 132). Como se pode ver, aí já há uma redução dos diversos tipos de relações lógicas conjuntivas. Só faltou acrescentar que a construção (2) equivale a Pedro morreu em Roma e Paulo morreu em Roma, e a (3) a Pedro é amigo de Paulo e Paulo é amigo de Pedro (p. 129), com o que o valor conjuncional de 'e' se manteria.
Segundo Maritain, "a proposição disjuntiva pode reduzir-se à proposição condicional" (disjunção). Por exemplo, o enunciado (4) Haverá um só chefe ou as coisas serão mal governadas se resolve em (5) se não houver um só chefe, as coisas serão mal governadas e (6) se houver um só chefe, as coisas não serão mal governadas (p. 132). A condicional se converteria em algum tipo de conjuntiva, uma vez que "na proposição condicional, com efeito, o juízo se dirige unicamente sobre a conjunção das proposições entre si". O exemplo (7) Se a terra gira, ela se move (p. 130), no fundo significa que “a terra gira e move”.
Ainda no sentido de redução das relações, Maritain informa que "Bergson acha que um juízo negativo ‘esta mesa não é branca’, não é mais do que um protesto contra um juízo afirmadivo possível, e por conseguinte não recai, a bem dizer, sobre a coisa em si, 'mas antes sobre o juízo' afirmativo que alguém poderia fazer a respeito" (p. 136). Mas, a despeito desse esforço de redução, na verdade Maritain multiplica as relações praeter necessitatem, exatamente como fazem as gramáticas normativas, que seguem a mesma filosofia. Ele fala em “proposição causal’, “proposição relativa”, “proposição adversativa”, “proposição exclusiva, “proposição exceptiva” e “proposição reduplicativa”.
Vejamos como a coisa se apresenta nas gramáticas normativas e como elas multiplicam as relações talvez até mais do que Jacques Maritain. Vou me basear em Cunha (1970), a fim de mostrar como é possível reduzir drasticamente o número de “conjunções”, ou melhor de função conjuncional. Entre as “aditivas”, já vemos que nem não passa de um equivalente de e seguido de negação, ou seja, equivale a e não. Elas representam uma relação fundamental, de conjunção, simultaneidade.
As “adversativas” seriam mas, porém, todavia, contudo, no entanto, entretanto. Além do fato de serem sinônimas, no fundo elas indicam que quando uma coisa se dá a outra não, logo acabam desembocando no contrário da conjunção, a disjunção. O exemplo com mas apresentado no segundo parágrafo acima demonstra-o claramente. As “alternativas” (ou, ora, quer, seja, nem, repetidas ou não) são até mais disjuntivas, de modo que as adversativas. Com efeito, em ou eu me retiro ou tu te afastas, o que temos é que os dois atos não podem se dar ao mesmo tempo. Enfim, como veremos com a análise das demais conjunções, as conjunções fundamentais, prototípicas, são e e ou, a conjunção e a disjunção, respectivamente.
Vejamos as “conclusivas” logo, pois, portanto, por conseguinte, por isso, assim etc. De maneira bem chã e rasteira, uma frase como penso, logo existo não quer dizer nada mais, nada menos do que “eu penso e eu existo”. Algo parecido se pode dizer das “explicativas”. Ao dizer vamos comer porque estou morrendo de fome, o falante está expressando a ideia de que o estar com fome tem que se juntar à ação de comer.
As “conjunções subordinativas” vão pelo mesmo diapasão. As “causais” (porque, pois, porquanto etc.), para começo de conversa, também juntam duas coisas. Uma só pode ser causa da outra se o efeito se seguir à causa, logo, ocorrer junto com ela, como em como [=porque] o mundo não para, a Igreja também vai marchando, vale dizer, o mundo não para e a Igreja vai marchando. Argumentos parecidos incluiriam as demais na conjunção. A única exceção parece serem as integrantes, cuja função é exclusivamente mostrar que uma oração é complemento da outra: tenho certeza de que ele virá e quero que você venha. Mesmo nesse caso, poder-se-ia discutir se as duas expressões não seriam o mesmo que *tenho certeza e ele virá e *eu quero e ele vem.
As duas relações fundamentais (conjunção e disjunção) a que as “conjunções” parecem reduzir-se têm ver com a espácio-temporalidade. Isso parece ficar mais claro se nos lembrarmos de que conjunção é uma relação de simultaneidade espácio-temporal. A disjunção é o seu contrário, logo se articula ao longo do mesmo eixo, isto é, é também de natureza espácio-temporal. Ora, se é de natureza espácio-temporal tem a ver com o mundo extralinguístico, com o meio ambiente natural da língua. Deve ser observado, contudo, que essa relação com o mundo extralinguístico é indireta, ela se dá só depois de reduzirmos as “conjunções” propriamente ditas a suas bases lógicas. As relações indicadas pelas “conjunções” podem até ter a ver com o mundo extralinguístico, mas apenas indiretamente. As indicadas pelas preposições emergem imediatamente de nossa experiência com o mundo real. O conceito de interioridade, ou melhor, de uma coisa dentro de outra (indicada pela preposição em) não depende de lógica nem de observador, como se pode ver em


Como disse Izidoro Blickstein, “a significação do mundo deve irromper antes mesmo da codificação linguística com que o recortamos: os significados já vão sendo desenhados na própria percepção/cognição da realidade” (Blickstein 1983: 17). Segundo o autor, “linguistas e semiólogos têm sido refratários ao exame da percepção da ‘coisa’ extralinguística” (p. 42). No entanto, “é necessário reconhecer que a experiência perceptiva já é um processo de cognição, de construção e ordenação do universo” (ibidem). Por isso, “deveriam alargar a sua metodologia de análise, voltando-se agora também para o lado direito do triângulo de Ogden e Richards – em que se coloca o referente – e explorando o mecanismo pelo qual a percepção/cognição transforma o ‘real’ em referente” (p. 46). Ele complementa esse triângulo aproximadamente como se vê na figura a seguir.

            Referência
                /     \
              /         \                   práxis
             /           \                      |
     Símbolo   Referente -------------- realidade

A figura mostra que “a realidade se transforma em referente, por meio da percepção/cognição (conforme Greimas) ou da interpretação humana (segundo Coseriu), e o referente será obrigatoriamente incluído na relação triádica”. Nesse caso, realmente as “conjunções” não chegam até a realidade, quando muito ao referente. Talvez as coisas fiquem mais claras partindo de uma reinterpretação e complementação do signo de Saussure, que consta apenas de significado e significante. Acrescentando o conceito que, aliás, já está antevisto em sua “imagem mental”, teríamos algo como a figura

   C
 /   \
S---R

em que S  está para signo, C para conceito e R para referente do mundo real. Partindo das duas maneiras de encarar a questão da referência, onomasiológica e semasiológica, podemos dizer que se há algum conteúdo semântico nas conjunções ele iria no máximo até o 'conceito' da primeira figura, não até a 'coisa' da realidade.
A língua nasceu filogeneticamente para falar do mundo. Ela renasce para a mesma finalidade ontogeneticamente em toda criança que vem ao mundo e começa a mergulhar nos fluxos interlocucionais que se dão em sua comunidade. Como está discutido em relativo detalhe em Couto (2007: 122-155, 275-280), a língua surge para falarmos do mundo. Tudo nela existe em função disso, inclusive as preposições e as conjunções. As primeiras indicam relações do mundo diretamente, ao passo que as indicam algumas relações reais apenas indiretamente.

Referências
Blickstein, Izidoro. 1983. Kaspar Hauser ou a fabricação da realidade. São Paulo: Editora Cultrix/EDUSP.
Couto, Hildo Honório do. 1973. Os conetivos. Dissertação de mestrado, defendida na USP.  
_______. 2007. Ecolinguística: Estudo das relações entre língua e meio ambiente. Brasília: Thesaurus.
Cunha, Celso. 1970. Gramática do português contemporâneo. Belo Horizonte: Editora Bernardo Álvares.
Hegenberg, Leônidas. 1966. Lógica simbólica. São Paulo: Editora Herder/EDUSP.
Maritain, Jacques. 1980. Elementos de filosofia vol. II. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 9ª. ed.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

A ecologia da interação comunicativa II

Em uma postagem anterior, a sexta, já falei da ecologia da interação comunicativa (EIC), como sendo o núcleo da linguagem. Pois bem, como a pesquisa é dinâmica e está sempre avançando, é chegado o momento de fazer alguns acréscimos ao que lá foi exposto.
Gostaria de começar pela famosa figura da comunicação exposta no livro Curso de linguística geral de Ferdinand de Saussure. Trata-se de duas cabeças, uma voltada para a outra com uma linha partindo da boca de um, dirigida ao ouvido da outra e vice-versa. Essa figura tem sido objeto de crítica, sob a alegação de que veria a interação linguística como algo fechado. No entanto, pelo simples fato de mostrar interação, aponta para pelo menos três fatos importantes na concepção de linguagem. Primeiro de tudo, o simples fato de salientar a própria interação, que é o ponto fulcral da linguística ecossistêmica e da ecolinguística em geral. Segundo, ela contém os dois atores da ecologia da interação comunicativa, ou seja, falante e ouvinte. Terceiro, ela sugere que o processo interlocucional é cíclico: num primeiro momento, um deles é falante e o outro ouvinte. Num segundo momento, os papéis se invertem. No terceiro de novo, e assim sucessivamente. 
Algo parecido pode ser dito da proposta de Bloomfield, logo no início de seu livro clássico Language. Ele põe os jovens Jack e Jill a interagirem, num processo que lembra o do fluxo interlocucional da ecologia da interação comunicativa, vista na outra postagem sobre EIC. O que é mais, Bloomfield mostra que a interação propriamente linguística envolve interações não linguísticas também. Vale dizer, antes de criticarmos esses dois clássicos, é bom examinar melhor suas propostas. Afinal, pelo menos indiretamente elas têm algo a ver com a visão de Bakhtin (Marxismo e filosofia da linguagem), segundo a qual o lugar em que podemos surpreender a linguagem em sua essência é a interação comunicativa. Nesse sentido, a gramática gerativa foi um retrocesso na história da linguística.
De acordo com a visão de mundo que surgiu a partir da segunda década do século passado com a teoria da relatividade, o mundo todo é uma imensa teia ou rede de interações. Tudo é interação. A interação é universal. Com o advento da ecologia, essa visão foi imensamente reforçada, como se pode ver em Capra (2002). O conceito central da ecologia é o de ecossistema, em cujo interior o que interessa são as interações (I) entre os membros de uma população (P) de organismos e seu meio, habitat ou território (T). Na linguagem é a mesma coisa: o conceito central é o de comunidade, aqui chamado de ecossistema linguístico, cujos componentes são uma população ou povo (P), convivendo em determinado lugar ou território (T) e comunicando-se entre si pela linguagem (L) que lhe é própria. A única diferença entre o ecossistema linguístico (comunidade) e o biológico (biocenose) é que, no segundo, as interações são chamadas de interações mesmo, ao passo que na interação humana elas são chamadas de linguagem (L).  
Os componentes básicos da EIC são o cenário, um falante (F), um ouvinte (O), cada um com os seus, ou seja, aquele (ou aqueles) que está (estão) ao seu lado, do seu grupo. Aquele que está no lado do falante podemos chamar de ELE1; o que está no lado do ouvinte, ELE2. O falante, como o EU da interação, pode incluir ELE1 em sua fala, mas excluir TU, o que dá o NÓS exclusivo (tupi oré). Porém, pode incluir TU, redundando no NÓS inclusivo (tupi jandé). Quando F se refere a TU mais ELE2, produz o VÓS (vocês no Brasil). O lugar do EU é aqui, o tempo é agora e o modo é assim. O lugar do TU é , o tempo então e o modo assado. O ELE de que se fala pode ser substituído por todos os substantivos da língua, uma vez que os interlocutores podem falar de qualquer coisa, de tudo. Mais uma vez, contrariamente à tradição, são os nomes que substituem os pronomes, não o contrário. Tudo de que F e O precisarem falar receberá um nome, o que mostra que o vocabulário (e toda a língua) nasce nos diversos atos de interação comunicativa que ocorrem em cada EIC. Para mais detalhes sobre esse tópico, pode-se ler a postagem de número treze, aqui mesmo.
O cenário da EIC varia em cada caso. Ele compreende o lugar (uma parte de T) e tudo ao redor, imediata e mediatamente. Essa parte do que se chama de meio ambiente natural, na verdade pode ter componentes artificiais, ou seja, o ambiente construído, como uma cidade, por exemplo. Aliás, não é só a parte física que pode entrar em ação na EIC, mas também ingredientes do meio ambiente mental e do social. Tudo de que F e O podem lançar mão eficazmente na interlocução é parte do cenário. As regras sistêmicas são consideradas o centro da linguagem para todas as teorias de orientação formalista, como a gramática gerativa. Para a ecolinguística, sobretudo para a linguística ecossistêmica, elas são, ao contrário, ancilares na interação comunicativa. Tanto que pode haver algum tipo de interação comunicativa eficaz sem elas mediante gestos, na comunhão e em casos extremos como o da interação que houve entre portugueses e índios tupinambás em Porto Seguro em 1.500.
É claro que para uma comunicação mais aprofundada, mais abstrata, as regras sistêmicas são indispensáveis. No entanto, elas podem ser infringidas, o que raramente ocorre com as regras interacionais. Vejamos o seguinte enunciado da variedade rural do português brasileiro falada na região de Major Porto, município de Patos de Minas (MG).

“... não, o cumpad’ Zé.... --- a gente ia pa roça, se tivesse de sole quente ele chamava pa nóis i ... pa casa dele pa nóis réfrescá do sole...; e se tivesse de chuva.... e pur lá nóis ficava o dia tamém. Num vortava” (Couto 1974).

Do ponto de vista das regras sistêmicas (gramática), praticamente tudo nesse excerto de diálogo é agramatical. Inclusive do ponto de vista da coerência e coesão textual ele parece algo inteiramente desconjuntado. Se levarmos em conta o contexto, o cenário em que ele foi produzido, veremos que não se trata de nenhuma monstruosidade.  
O enunciado se tivesse de chuva é, na verdade, incompleto. No entanto, no ato de interação comunicativa concreto em que apareceu, ele está em paralelo com se tivesse de sole quente ele chamava pa nóis i pa casa dele. Portanto, essa elipse é facilmente preenchida e falante e ouvinte sabem que a forma completa é se tivesse de chuva ele chamava pa nóis i pa casa dele. A interação comunicativa permite elipses, anacolutos e até outras figuras aparentemente mais abstrusas se elucidarem. O que interessa é a eficácia comunicativa. Para tanto, usa-se o princípio de economia, omitindo-se o que fica subentendido. Não é necessário repetir tudo que o interlocutor já sabe. F e O sabem que a forma não marcada de construção sintática em português é sujeito + verbo + objeto. No entanto, tudo isso pode ser infringido conforme o cenário da EIC.
No contexto do diálogo em que essa fala é resposta a uma pergunta, no caso, sobre o senhor José Altino, percebe-se que o ‘não’ inicial é uma espécie de operador de discurso com que o autor da frase coneta sua fala com a pergunta, recurso normal do português. O fato é que recuperadas todas as “estruturas profundas” (de versões antigas da gramática gerativa) normais do português e que tanto F quanto O conhecem, nota-se que o enunciado como um todo pode ser refeito do seguinte modo:

“Não, no que se refere ao compadre José, [quando a gente ia trabalhar para ele] a gente ia para a roça. Se o sol estivesse quente, ele nos chamava para ir para casa dele para refrescamos; se estivesse de chuva, [ele também nos chamava para a casa dele], e por lá passávamos o dia também. Não voltávamos ao [trabalho]”.

O importante na interação comunicativa é o entendimento. Como tanto F quanto O conheciam o cenário (contexto), as regras interacionais e as regras sistêmicas, o interlocutor entendeu o enunciado como recém-refeito sem nenhum problema. Nenhum deles achou que o enunciado original estivesse disforme. Esse é o modo tradicional de se falar localmente, uma vez que todos os membros da comunidade conhecem as “estruturas profundas”, subjacentes a eles. O que eles fazem é, na verdade, manipulá-las, de modo que o que os gerativistas chamavam antigamente de “estruturas superficiais” podem se distanciar bastante delas. O que importa é a eficácia na interação comunicativa, o que sempre se dá, nunca há incomunicação entre os membros da comunidade de fala local.
Certamente mais importantes do que as regras sistêmicas são as regras interacionais. Sem elas não há a menor possibilidade de haver uma interação comunicativa, mesmo que F e O compartilhem um sistema. Este apenas as complementa, permitindo algum entendimento na ausência de referentes. Vejamos as doze regras interacionais que já detectamos até o momento. As regras sistêmicas são, na verdade, parte delas. Elas são as últimas dentre as regras interacionais, em consonância com o pensamento de Coseriu (1968), que afirmou que o sistema está na fala, mas a fala não está no sistema.     

1) F e O ficam próximos um do outro, aproximadamente um metro.
2) F e O ficam de frente um para o outro.
3) F e O devem olhar para o rosto um do outro, se possível para os olhos.
4) a uma solicitação deve corresponder uma satisfação.
5) tanto solicitação quanto satisfação devem ser formuladas em um tom cooperativo, harmonioso, solidário, com delicadeza,
6) a solicitação deve ser precedida de algum tipo de pré-solicitação (por favor, oi etc.).
7) a tomada de turno: enquanto um fala, o outro ouve.
8) se o assunto da interação for sério, F e O devem aparentar um ar de seriedade, sem ser sisudo, carrancudo; se for leve, um ar de leveza, com expressão facial de simpatia (leve sorriso, se possível); a inversão dessas aparências pode parecer antipática, não receptiva etc.
9) F e O devem manter-se atentos, "ligados" durante a interação, sem distrações, olhares para os lados;
10) durante a interação, F e O de vez em quando devem sinalizar que estão atentos, sobretudo na interação telefônica, que ainda “estão na linha”.
11) o encerramento da interação comunicativa não deve ser feito bruscamente, mas com algum tipo de preparação; quem desejar encerrá-la deve sinalizar essa intenção (tá bom, tá, é isso etc.).
l2) em geral, é quem iniciou a interação que toma a iniciativa de encerrá-la; o contrário pode ser tido como não cooperativo, não harmonioso.
13) Regras sistêmicas (inclui toda a ‘gramática’).

As regras interacionais também podem ser infringidas, pelo menos algumas delas. Porém, essa infringência pode acarretar sanção social. No caso da de número 2, por exemplo, se o falante não se postar de frente para seu interlocutor, isso poderá ser interpretado, e o é, como descortesia, com o que não se estabelecerá a comunhão prévia, necessária para que qualquer interação seja eficaz. Mesmo que ela já tenha sido iniciada com sucesso, poderá ser quebrada.
Algo semelhante se pode dizer das demais regras interacionais. Para dar apenas mais um exemplo, vejamos a de número 4. Se O não atender a solicitação de F, este se sentirá ofendido, considerará a atitude de O como não solidária, arrogante, de desprezo etc., tudo menos cooperação e solidariedade.
A única exceção talvez seja a regra de número 1. Se F e O estiverem muito longe um do outro, O poderá não ouvir o que F disser, ou seja, a ineficácia comunicativa terá a ver com algo natural, a não captação do som proferido por F devido à distância física. Por outro lado, se estiverem perto demais um do outro teremos uma atitude socialmente mal-vinda, poderá haver a sensação de que um está invadindo o espaço do outro, o que é até mais agressivo na cultura anglo-saxônica.
As regras interacionais podem ser gerais ou específicas. Regras interacionais gerais são naturalmente aquelas que têm validade para todo o domínio da língua em questão. As regras interacionais específicas são as que têm validade só para a EIC em questão ou para a comunidade de fala em que ela se dá.   
A ideia de que as regras sistêmicas são parte das regras interacionais pode parecer estranha ao leigo. Para dirimir qualquer dúvida, vejamos um exemplo. Quando o ouvinte recebe um enunciado como O rapaz magro ama a moça loira do falante, entende o seguinte, uma vez que compartilham as regras sistêmicas da língua: 1) quem pratica a ação de amar é o rapaz magro e o alvo do amor é a moça loira. Isso acontece porque ambos sabem que, em sua língua, canonicamente o sujeito vem antes do verbo e o objeto vem depois dele; 2) F sabe que O indica que rapaz magro é conhecido de O; 3) tanto F quanto O, bem como os demais membros da comunidade de fala deles, sabem que magro qualifica o referente da expressão O rapaz porque vem depois dela, o que se aplica também a loira relativamente a a moça; 4) F e O sabem também que ama teria que ser amam se, por exemplo, em vez do singular, na posição de sujeito tivéssemos Os rapazes magros. O mesmo se dá com o O de O rapaz magro e o a de a moça loira: 5) estão no singular para concordar com o singular de rapaz e moça, respectivamente; finalmente, 6) magro e loira estão no singular também para concordar com o singular de rapaz e moça, respectivamente. Essas regras apresentam variantes, que as versões antigas da gramática gerativa chamavam de “transformações”. A voz passiva seria uma delas, com o que teríamos 7) A moça loira é amada pelo rapaz magro. Conforme o contexto, diversas outras “transformações” pode ocorrer, às vezes chamadas de paráfrases, como É o rapaz magro que ama a moça loira, É a moça loira que é amada pelo rapaz magro e assim por diante. Assim, detectamos pelo menos sete regras sistêmicas que existem para o entendimento, logo, são auxiliares das regras interacionais.
Em suma, a língua como sistema (gramática) é apenas mais um dos componentes da interação comunicativa, e não o mais importante. Antes das regras sistêmicas é necessário haver o cenário (contexto) e as regras interacionais. As regras sistêmicas não mais do que uma parte das regras interacionais. Aquilo que chamamos até certo ponto inadequadamente de ‘língua’, na verdade compreende (a) cenário, (b) interlocutores (F, O), (c) regras interacionais, nas quais é necessáiro destacar as (c’) regras sistêmicas.

Referências
Capra, Fritjof. 2002. O tao de física. São Paulo: Cultrix.
Coseriu, Eugeniu. 1967. Teoría del lenguaje y linguistica general. Madrid: Gredos, 2a ed.
Couto, Elza Kioko Nakayama Nenoki do Couto & Hildo Honório do Couto. 2013. O discurso ‘fragmentado’ dos meninos de rua e da linguagem rural: uma visão ecolinguística. Comunicação lida no SIMELP – Simpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa. Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 32 de julho de 2013.
Couto, Hildo Honório do. 1974. O falar capelinhense. Uma visão sociolinguistica. Londrina: UEL, 79p.

terça-feira, 23 de julho de 2013

A língua não é uma coisa, é motraive


Introdução
Certa feita iniciei uma palestra sobre ecolinguística com a seguinte pergunta: “A língua é uma coisa?” As pessoas do auditório ficaram espantadas, certamente pensando como é que alguém poderia fazer uma pergunta dessas. Quando eu disse que toda concepção de língua que a considere um meio ou instrumento de comunicação, ou de expressão do pensamento a reifica, a estupefação continuou. Só começaram a não achar minha pergunta inteiramente absurda quando lembrei que “instrumento” é uma coisa que se usa para fazer algo. Se a língua é um instrumento de comunicação ou de expressão do pensamento, ela é uma coisa, que uso para comunicar ou expressar meus pensamentos. Todas as versões do estruturalismo estão nesse caso, sobretudo o gerativismo. É uma concepção de língua que não avançou muito desde Schleicher no século XIX, embora em outros sentidos as ideias desse autor tenham representado um grande progresso nos estudos da linguagem. O mesmo se pode dizer dos estruturalismos, que trouxeram esses estudos para o estágio de conhecimento científico da mecânica clássica.
Com o advento da nova visão de mundo desvelada pela teoria da relatividade e pela mecânica quântica por volta da segunda década do século passado, as coisas começaram a mudar, embora não de modo imediato na linguística. O mundo não era mais visto como uma coisa, localizada no espaço, composta de partes menores. Como diz Capra (2002: 231), “enquanto que na física clássica, as propriedades e o comportamento das partes determinam as propriedades e o comportamento do todo, na física quântica a situação é a inversa: o todo é que determina o comportamento das partes”. Aplicando isso à linguagem, veremos que o todo é a interação comunicativa, localizada na respectiva ecologia da interação comunicativa (EIC). Há “uma mudança do pensamento em termos de estrutura para o pensamento em termos de processo” (p. 244), confirmando mais uma vez a prioridade da interação comunicativa sobre o sistema. Nesse caso, “o universo material é visto como uma teia dinâmica de eventos inter-relacionados. Nenhuma das propriedades de qualquer parte dessa teia é fundamental; todas resultam das propriedades das outras partes, e a consistência global de suas inter-relações determina a estrutura de toda a teia” (p. 247). Enfim, falando da difícil questão ‘onda’ ou ‘partícula’, Capra acrescenta que “nem a linguagem nem a imaginação estavam suficientemente capacitadas para lidar com esse tipo de fenômeno” (p. 44).
Essa nova visão de mundo de certo modo foi reforçada com a entrada em cena da ciência da ecologia, para a qual o que interessa não são os organismos em si que vivem em determinado território nem o próprio território em si, mas as inter-relações entre eles no interior de um ecossistema, delimitado pelo investigador, mas visto como um todo. Logo a seguir, algumas ciências humanas começaram a aplicar essa visão de mundo no estudo de seu objeto, como é o caso da geografia (na verdade, isso já começara com Ratzel no final do século XIX), da antropologia, da sociologia e da psicologia, entre outras. Em 1911, Sapir deu o primeiro sinal de que esses princípios poderiam ser aplicados ao estudo da linguagem também (ver Sapir 1969), mas, foi só no início da década de setenta que Einar Haugen deu o pontapé inicial para uma abordagem ecológica da língua (Haugen, 1972).

Ecolinguística: uma nova maneira de encarar a linguagem
Como reação à rigidez da “língua” do estruturalismo, começaram a surgir concepções mais “interacionistas”. O grande problema com muitas delas é que, também elas, consideram a língua como um instrumento de interação, de comunicação e, como já vimos, isso implica sua reificação. No início da década de noventa, Fill (1993) e Makkai (1993) pegaram a bola de Haugen e começaram o jogo da ecolinguística. Só que, mesmo vendo na língua algo dinâmico e aberto, embora sistêmico, a ecolinguística por eles proposta começou a usar conceitos ecológicos como meras metáforas, como muito bem observou Garner (2004). Pelo menos de modo explícito, foi só em Couto (2007) que se começou a ver a língua não mais como um instrumento de comunicação ou expressão de pensamento que pode ser estudado importando metaforicamente conceitos da ecologia. Começou-se a vê-la como uma imensa teia ou rede de interações que se dão no interior do ecossistema linguístico. Melhor dizendo, começou-se a vê-la como um processo, não uma estrutura. A nova visão pôs em prática sugestões de Finke (1996), Trampe (1990) e Garner (2004), entre outros, no sentido de ver a língua como um conjunto de interações verbais que se dão no interior do ecossistema linguístico.
Não se transportam mais conceitos da ecologia para a linguística metaforicamente. Com o reforço de novas investigações contidas em Couto (2013), a ideia de língua como rede ou teia de interações, como processo, ficou relativamente bem estabelecida. Nascia a linguística ecossistêmica, de discussões do presente autor com seus colegas de pesquisa (Elza Kioko do Couto, Gilberto P. de Araújo, Davi B. de Albuquerque), no seio do que veio a ser chamado de Escola Ecolinguística de Brasília. A partir daí, constatamos que não usamos conceitos ecológicos como metáforas. Nós praticamos ecologia, no caso, ecologia linguística, outro nome para ecolinguística, e a ecologia linguística que praticamos é precisamente a linguística ecossistêmica, pelo fato de nosso conceito central ser o de ecossistema linguístico, do mesmo modo que o conceito central da ecologia biológica é o de ecossistema biológico. Este último é formado pelas inter-relações (interações) que se dão entre organismos e respectivo meio ou território, bem como as que se dão entre os próprios organismos. No caso da linguística ecossistêmica, o primeiro tipo de relação (interação) constitui a designação de aspectos do mundo, também conhecida como referência, denotação, significação, entre outros nomes, dependendo da perspectiva. O segundo tipo, as relações (interações) entre quaisquer dois organismos ou, no caso, pessoas, constitui a comunicação que, linguístico-ecossistemicamente é chamada de interação comunicativa. Para essa versão da ecolinguística, o último tipo de interação é central, pois ele engloba o primeiro. Nós comunicamos referindo-nos a algo, o que implica que a referência existe em função da comunicação.
A nova concepção de língua na verdade nem é tão nova assim, mas é de difícil aceitação. Ela implica uma mudança de postura, que Capra (2002: 244) chamou de novo paradigma, o paradigma ecológico. A linguística ecossistêmica é justamente uma tentativa de se olhar para os fenômenos da linguagem de acordo com essa nova visão de mundo. Ela exige uma mudança em nossas crenças linguísticas. Mas, como disse Einstein, embora isso não esteja comprovado, é mais fácil cindir o átomo do que mudar as crenças de uma pessoa. É aproximadamente como mudar de religião, como do cristianismo para o islamismo. Isso implicaria uma drástica alteração da postura frente ao mundo, sobretudo no que se refere às relações entre homem e mulher. É também como mudar de língua, ter que se comunicar em uma outra língua depois da idade adulta. O falante teria que encarar o mundo, e falar dele, pelo modo como os membros da nova comunidade o fazem. Por fim, seria como se inserir em uma nova cultura, o que implica os dois casos anteriores. Cada cultura se relaciona com o mundo de modo diferente. Às vezes é difícil aceitar determinados costumes de certas tribos indígenas, como o infanticídio, sobretudo por parte dos citadinos. Enfim, praticar ecolinguística é não apenas postar-se na cumeeira da casa, mas também trocar de binóculos para olhar seu entorno e de câmera para registrar o que se observa. Essa câmera deve estar provida de fortes dispositivos de zoom a fim de se fazer registros não apenas macroscópicos, mas também microcoscópicos.
 
Linguística Ecossistêmica: a língua como interação no ecossistema linguístico
A linguística ecossistêmica representa um nova maneira de olhar para os fenômenos da linguagem. Para as pessoas em geral é extremamente difícil, às vezes impossível, saírem da comodidade de olhar para o mundo como sempre fizeram e como sempre se fez. A tradição da gramática normativa e a própria tradição da ciência linguística têm deixado pré-conceitos dos quais têm muita dificuldade de se desfazerem. A primeira impingiu em nós na escola a ideia estapafúrdia de que o essencial na língua é a escrita, juntamente com todo o sistema normativo que está por traz dela, com o que deixa implícito que a fala seria um derivado empobrecido dela. Por mais que alguns linguistas achem isso absurdo nos dias de hoje, ainda podemos ver essa ideologia sendo manifestada aqui e ali com relativa frequência. A segunda, a linguística moderna, pelo menos em sua maior parte tem dito que a linguagem é um instrumento de comunicação, com o que a reifica. Como salientado em Couto & Couto (2013), a língua não é instrumento de expressão do pensamento nem instrumento de comunicação. Ela é a própria comunicação.  
A dificuldade de aceitar a nova concepção de linguagem se explica por outros motivos. Como disse Fritjof Capra, "as teorias quântica e da relatividade, os dois pilares da Física moderna, tornaram claro o fato de que essa realidade transcende a lógica clássica e de que não podemos falar a respeito dela usando a linguagem cotidiana" (Capra 2002: 42). A propósito da "teoria quântica" Heisenberg afirmou: "aqui não nos deparamos de início com qualquer guia simples que nos permita correlacionar os símbolos matemáticos com os conceitos da linguagem usual; e a única coisa que sabemos desde o início é o fato de que nossos conceitos comuns não podem ser aplicados à estrutura dos átomos" (Heisenberg, apud Capra 2002: 42). Como a linguagem natural não dispunha de recursos para isso, usou-se a linguagem matemática, que, segundo Galileo é a linguagem da natureza. O físico Davi Bohm (2001) foi mais longe, sugerindo uma mudança na estrutura da linguagem natural, da ênfase nos nomes (substantivos) para ênfase nos verbos o que ele chamou de reomodo (grego: rheo = fluir). Tudo isso para evitar ver-se o mundo como uma coisa, composta de coisas menores, mas como processo.
Em vez de estrutura, fala-se agora em redes e processos. A rede não tem um ponto central, do qual os outros são dependentes. Até o surgimento da nova visão, o “bom” português era o de Portugal, sendo o do Brasil e dos demais países considerado como uma variação (para pior) dele. Assim, o centro do “bom” português seria Lisboa, cuja linguagem deveria ser seguida por todas as demais regiões lusófonas do mundo. Com a nova visão, Lisboa (ou Portugal) como um todo deixa de ser o “centro” do português, e as demais regiões (Rio de Janeiro, Luanda, Maputo etc.) a periferia. Cada uma delas pode ser encarada, momentaneamente, como centro pelo investigador para suas finalidades específicas. Trata-se do pluricentrismo, contrariamente ao monocentrismo anterior (Clyne 1992, Stork 2007, Amorós 2012, Batoréo & Casadinho 2009). No entanto, como ficou claro de discussões que mantive com Gilberto Paulino de Araújo, pluricentrismo também implica ‘centro’, de modo que o mais consentâneo com a visão de redes e processos em vez de estruturas é acentrismo, ausência de centros. Com isso, o investigador pode considerar qualquer ponto da rede como o ‘centro’ hic et nunc. Morin (2007: 27) disse que “o ecossistema se autoproduz, autorregula e auto-organiza de modo tão mais notável que não dispõe de um centro de controle, de nenhuma cabeça reguladora, de nenhum programa genético. Seu processo de autorregulação integra a morte na vida e a vida na morte”. Na linguagem, essa visão vale não só para o domínio total da comunidade de língua (caso do português: Timor Leste, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Moçambique, Angola, Brasil, Portugal), mas para o interior de cada país também, isto é, para o dialetalismo. Qualquer lugarejo, por menor que seja, pode ser considerado pelo observador, momentaneamente, o ‘centro’ da comunidade linguística portuguesa. Voltarei ao assunto abaixo.
Repitamos, para a linguística ecossistêmica o núcleo da língua é constituído pelos atos de interação comunicativa (AIC), que se dão no interior da ecologia da interação comunicativa (EIC). Como AIC e EIC têm sido estudados em diversas outras publicações (cf. Couto 2013a, Couto 2013b, Couto; Couto 2013, entre outras), não vou desenvolvê-los aqui. Gostaria apenas de lembrar que a EIC compreende a) um cenário, b) um falante, c) um ouvinte, d) circunstantes (o/os que está/ão com falante e o/os que está/ão com ouvinte). Nesse cenário, falante e ouvinte fazem uso de (e) regras interacionais e (f) regras sistêmicas, sendo que as segundas estão incluídas nas primeiras, são suas auxiliares na interação comunicativa, como está discutido sucintamente em Couto; Couto (2013). Para aqueles que talvez achem estranho considerar as regras sistêmicas (gramática) como auxiliares das regras interacionais, gostaria de lembrar o que vem dizendo Eugenio Coseriu há muitos anos. De acordo com ele, e interpretando“hablar” como interação comunicativa e “lengua” como regras sistêmicas, "mientras que la lengua se halla toda contenida en hablar, el hablar no se halla todo contenido en la lengua" (Coseriu, 1967: 287). Em suma, tudo na língua existe em função da interação comunicativa, como já salientara Roman Jakobson.

Motraive
Se dizer que língua é instrumento de comunicação é reificá-la, então, como podemos defini-la? De novo, podemos nos valer de achados da física moderna. Como se chegou à conclusão de que a própria matéria é uma forma de energia, chegou-se também a uma fórmula matemática extremamente simples. Em Capra (2002: 155), se pode ler que "a quantidade de energia contida, por exemplo, numa partícula é igual à massa da partícula, m, multiplicada por c2, o quadrado da velocidade da luz". Assim, temos a fórmula:
E = mc2
Em psicologia Kurt Lewin propôs a equação B = f (P, E), ou seja, "behavior" é uma função (f) da pessoa (P) em seu "environment" (E). Traduzido ecolinguisticamete, teríamos L = f (P, M): linguagem é função (f) das pessoas (P) em seu meio (M). Como em ciências humanas não é tão fácil lidar com fórmulas matemáticas, podemos nos valer do recurso da sigla, da acronímia. Nesse caso, do ponto de vista da linguística ecossistêmica, poderíamos dizer que a fórmula para língua é:

L=MOTRAIVE

Trata-se de um recurso aparentemente estranho, de difícil aceitação pelo status quo linguístico e até pelo leigo. De qualquer forma, ele é melhor do que dizer que “língua é instrumento de comunicação”, ou “língua é instrumento de expressão do pensamento”, transformando-a em uma coisa. Se linguagem é interação, comunicação, então a definição de que 'língua é o modo tradicional de os membros de uma comunidade interagir verbalmente' (motraive), se mostra surpreendentemente simples. Exatamente como a fórmula física da energia. Trata-se de uma palavra de apenas três sílabas. Como já salientaram diversos cientistas, inclusive o linguista Noam Chomsky, as questões fundamentais são simples. A aparentemente estranha sigla, que pode ser lida como uma palavra, revela, em sua singeleza, que língua é o modo habitual pelo qual os membros da comunidade interagem entre si por meio de palavras. Essa é a visão global, abrangente e holística da língua, uma vez que açambarca tudo na linguagem, inclusive o sistema. O único senão seria a sílaba complexa /trai/. Mas, isso é de somenos importância, diante das diversas esparrelas em que podem cair aqueles que definem língua como instrumento para isso ou para aquilo.
A reificação da língua certamente se deve ainda ao nosso hábito de achar que toda palavra é o nome de alguma coisa, como disse já havia dito Parmênides (sec. V a.C.) e como disse Fernando Pessoa: “Saudades, só portugueses / Conseguem senti-las bem, / Porque têm essa palavra / Para dizer que as têm”. Com isso esquecemo-nos de que a palavra nasce para falarmos do mundo e que, só após formada ela se liberta dos referentes, podendo ser usada para nos comunicarmos também sobre o que ainda não existe e até do que nunca existirá (ficção). Do contrário, cairíamos na concepção bíblica de linguagem, como se pode ver no Gênesis. Primeiro, temos a situação em que o verbo se fez carne, num verbocriacionismo inaceitável linguístico-ecossistemicamente, embora não pelo construtivismo radical (Glasersfeld 1989, Maturana & Varela 2011). Quando constataram que a palavra ‘unicórnio’ não designava nada no mundo real, os norte-americanos implantaram um chifre no meio da testa de um tipo de cervo para “criar” um referente para a palavra. Aqui vem à tona a pergunta inglesa “What is in a name?”. Nesse contexto, a palavra ‘língua’ deve designar alguma coisa do mundo. Com isso, esquecemo-nos de que as palavras podem designar não só coisas (substantivos), mas também ações (verbos), qualidades (adjetivos), modos (advérbios), relações entre coisas (preposições) e entre orações (conjunções). Vale dizer, mesmo no contexto das categorias aristotélicas se pode ver que a palavra língua não precisa necessariamente designar uma coisa. Ela pode designar relações, ou melhor, interações, que é precisamente o que acontece de acordo com a linguística ecossistêmica.

Hábitos e regras
Em sociologia (Durkheim 1972) e em linguística, como nas primeiras fases da gramática gerativa, se fala muito em regras. Para muitos sociólogos posteriores, essas regras seriam processos sociais que derivariam de processos sociais, não haveria nada de natural nelas. No entanto, Finke (1996: 40) tem argumentado no sentido de que “elas nasceram de leis da natureza”. Isso vale ainda mais para muitas das regras interacionais, como as seguintes: (a) falante e ouvinte têm que ficar próximos um do outro, aproximadamente um metro; (b) falante e ouvinte têm que ficar de frente um para o outro. Se estiverem muito longe um do outro, o ouvinte pode não ouvir o que o falante lhe diz; se ficarem próximos demais, pode parecer que o falante está invadindo o “território” do ouvinte. Se, por outro lado, não ficarem de frente um para o outro, pode haver mal-entendidos, além da regra (hábito) social de que falar de costas para o interlocutor soa como indelicadeza. Para Finke até as regras morfossintáticas e fonológicas têm a ver com relações da natureza. Vale dizer, de acordo com esse pensador é necessário deixarmos de lado o antropocentrismo e ver que somos parte da natureza, na qual nascemos e da qual fazemos parte. A língua também tem a mesma origem, quando não porque formada por nós humanos: a língua (L) está na população (P), que está no território (T). Já vimos que tanto a comunicação como a referência fazem parte do ecossistema linguístico, e tem equivalente no ecossistema biológico. É bem provável que, geneticamente tanto referência quanto comunicação comecem de modo natural, mediante interações concretas, hic et nunc, de cada indivíduo da comunidade com o mundo (sensação). Com a repetição dessas interações, os aspectos do mundo com que entra em interação perceptiva começam a se solidificar no indivíduo, passando a ter um certo caráter mental, a fazer parte de seu conhecimento (identificação). A continuidade desse processo e, sobretudo, seu compartilhamento leva as experiências assim obtidas a terem um caráter social.
No caso específico da nossa linguagem, “durante muitos anos, existiu em nossa cultura um dogma de que a linguagem era absoluta e exclusivamente um privilégio humano, a anos-luz de distância da capacidade de outros animais. Em tempos mais recentes, essa ideia começou a abrandar-se de um modo notável” (Maturana & Varela, 2011: 234). Assim sendo, as regras de nossa língua (interacionais e sistêmicas) são pura e simplesmente resultados de “interações recorrentes” (p. 200).
A sequência ‘percepção’ de determinado aspecto do mundo (sensação), sua ‘identificação’ e ‘compartilhamento’ desse conhecimento (socialização) leva à necessidade de uma palavra que se refira a ele, que é o momento da ‘lexicalização’. Só assim será possível falar com os demais membros do grupo (comunicar-se) sobre o fenômeno em questão. Tudo isso passa a fazer parte dos hábitos e costumes da comunidade. Trata-se de hábitos mentais (alguns deles individuais), que podem tornar-se sociais. São esses hábitos sociais que têm sido chamados de regras. As regras interacionais são modos comunitários habituais de interagir nos atos de interação comunicativa. Como essas regras incluem as “regras sistêmicas”, também as últimas resultam desses hábitos (Couto, 2007: 128).

Comunidade de fala, rede e processos
Por ser motraive, o locus em que se pode apreender a língua da maneira mais abrangente possível é a ecologia da interação comunicativa (EIC). É aí que se dão as interações comunicativas, que são os diálogos, ou fluxos interlocucionais. Como já vimos, eles geralmente obedecem tantos às regras (hábitos) interacionais quanto às sistêmicas, o que já dá a entender que se trata de uma visão holística da língua. Retomando a questão “centro” versus “periferia”, sobre a qual a tese do pluricentrismo representou um avanço, temos que ir para o acentrismo. Como na visão holográfica (Bohm 2001), cada ponto em que detenhamos nossa atenção pode ser considerado como o “centro” da realidade em questão. O que é mais, esse “ponto” tem em potencial todas as propriedades essenciais do todo, implica todos os demais, ainda nas palavras de David Bohm.
Pensemos na comunidade de fala de Major Porto (ex-Capelinha do Chumbo), no município de Patos de Minas (MG), estudada por mim (Couto 1974). Essa comunidade de fala (CF) rural de cerca de três mil habitantes interage com todas as demais CF da língua portuguesa, imediata ou mediatamente. Ela sofre influência delas e as influencia. Isso porque ela tem, ou implica, todas as propriedades essenciais da língua portuguesa, entre elas as propriedades nucleares de população (P), linguagem (L) e território (T), que constituem o ecossistema fundamental da língua, no interior do qual se formam ecologias de interação comunicativa, com seu cenário, participantes, regras interacionais e regras sistêmicas.
Mesmo diante de tudo que foi dito, alguém poderia argumentar que a rede teria um “centro” e uma “periferia”, como a rede de pescar, a de uma grade, de uma peneira etc. Para evitar isso, imaginemos nossa rede com forma esférica. Nesse caso, qualquer ponto em que nos fixarmos estará em relação com todos os demais, direta ou indiretamente, imediata ou mediatamente. Além disso, é importante ter em mente que essa rede esférica é dinâmica, é um processo, não está fechada de modo estanque, mas aberta, recebendo influências do exterior e influenciando-o. Como no caso dos corpos celestes, todos esferoides e influenciando-se mutuamente, por atração e repulsão. Veja-se o caso das interações entre estrelas e planetas, bem como entre planetas e satélites e assim por diante, estudadas pelos físicos e pelos astrônomos. No caso da CF de Major Porto, ela é uma rede de interações, que faz parte da rede de interações que é a língua portuguesa, influenciando-a e sofrendo influências dela.

Janelas e cumeeira
Dizer que a linguística ecossistêmica, e todas as ciências que lhe servem de base procuram encarar seu objeto de modo holístico soa um tanto vago. É preciso matizar essa asserção. Pegando carona com o sociólogo franco-brasileiro Michael Löwy, que argumentava em termos marxistas, poderíamos usar a metáfora das janelas e da cumeeira da casa. Dessa perspectiva, modelos teóricos parcelares como a gramática gerativa, a sociolinguística, a psicolinguística, o funcionalismo e a análise do discurso, para mencionar uns poucos exemplos, são janelas. Cada uma delas nos mostra um diminuto aspecto do objeto da linguagem. O marxismo, em sua interpretação, ofereceria a vista que se tem da cumeeira da casa (Löwy 1985: 81). Trata-se de uma visão panorâmica, que desvela tudo que se encontra ao redor. Transposto isso para a linguagem, a janela do gerativismo nos mostraria apenas as regras sistêmicas que, como já vimos, são apenas um dos componentes da ecologia da interação comunicativa, e não o mais importante. Essa janela nos mostraria da linguagem apenas as regras sistêmicas canônicas, e algumas de suas transformações, na morfossintaxe e na fonologia, provavelmente também alguns aspectos da semântica. Só isso. O funcionalismo mostraria isso e como funciona na interação comunicativa. Ora, isso é muito pouco.
Para ter uma visão não fragmentada, abrangente, holística dos fenômenos da linguagem, temos que ir para a cumeeira da casa, de onde teremos a visão ecossistêmica. O problema é que daí não é possível estudarem-se detalhes, como a nasalidade vocálica em português ou as sentenças clivadas, por exemplo. Mas, isso não é nenhum problema. Para fazer esse tipo de análise o ecolinguista recruta os préstimos de um sintaticista, ou de um fonólogo, que lhe fornecerá os resultados desejados. Outra alternativa seria o próprio ecolinguista fazer a análise específica, se domina, como é desejável, uma especialidade como as acima mencionadas. De posse do resultado, ele retorna à cumeeira e o analisa no contexto abrangente que daí se descortina. Em outro lugar eu já comparei isso a um tipo de zoom, o que Garner (2004) também fez. Como salientou Capra (2002), as disciplinas parcelares estão no nível da física clássica, enquanto que a ecolinguística está no nível da teoria da relatividade e da mecânica quântica, bem como da ecologia. Para o estudo de fenômenos da vida quotidiana, a mecânica clássica é perfeita. No entanto, para o infinitamente pequeno, nível subatômico, e o infinitamente grande, nível cósmico, ela é insuficiente. Ela só pode ajudar em casos específicos, isolados, que devem ser integrados na visão de conjunto.  
Como se vê, a linguística ecossistêmica e a ecolinguística em geral são multimetodológicas. Elas podem usar o método do modelo teórico que serve para analisar determinados detalhes do objeto de estudo no momento que for preciso fazê-lo. Só que, obtido o resultado, o analista retorna à postura abrangente a fim de analisá-lo ecologicamente. Aliás, as demais ciências sociais de orientação ecológica fazem o mesmo. Veja-se, por exemplo, a psicologia ambiental (Günther & Rozestraten 2005).

Observações finais
Mal comparando, a estranheza perante a asserção de que ‘língua é motraive’ é semelhante à estranheza perante os achados da teoria da relatividade e da mecânica quântica. As duas resultam de uma nova visão de mundo, que exige que o encaremos de outro lugar, ou de mais de um lugar, a partir do qual vemos apenas aspectos minúsculos dele, para usar um termo do filósofo espanhol José Ortega y Gasset. A linguagem comum não tem termos e, no caso da teoria da relatividade e da mecânica quântica, expressões capazes de captar a nova realidade descoberta. Por isso o recurso à linguagem da natureza, a matemática. No caso da linguagem isso não é possível; a aparente matematização da gramática gerativa capta apenas parte de uma das menores facetas da língua, que são as regras sistêmicas. Por isso, se quisermos ver a língua como os físicos modernos e os ecólogos veem o mundo, só nos resta dizer que língua é o modo tradicional de interagir verbalmente. Tudo nela emerge e imerge aí. Diante de tudo isso, podemos dizer que língua é motraive. Depois, é só procurar o que está por trás dessa fórmula sob a aparência de uma palavra simples.
Uma observação final cabe bem aqui. Os estudos de fonologia feitos no contexto do estruturalismo procuravam palavras para formar pares mínimos a fim de comprovar a existência de fonemas apenas no dialeto estatal. Seria um anátema se alguém dissesse que temos o fonema /y/ em português porque ele ocorre em muié (mulher), trabaio (trabalho) e veio (velho). Tampouco seria tido como de bom tom dar termos como amá (amar), vendê (vender) e partí (partir) como exemplos de palavras oxítonas portuguesas terminadas em a, e e i. Usar palavras como carça (calça) e praca (placa) para exemplificar usos do fonema /r/ seria considerado uma aberração. Do ponto de vista da linguística ecossistêmica, a pergunta que se pode fazer nesse caso é: se essas palavras não estão incluídas no âmbito da língua portuguesa, a qual língua elas pertencem? Não seriam formas de língua nenhuma? Mas, a realidade está aí na nossa cara, mostrando-nos que elas ocorrem em grande quantidade no Brasil, país que se diz falante de língua portuguesa de ponta a ponta, o que incluiria as regiões rurais.

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segunda-feira, 1 de abril de 2013

Análise do Discurso Ecológica (ADE)

A fim de comprovar mais uma vez o holismo praticado pela linguística ecossistêmica apresentada em postagens anteriores, vou tentar mostrar como se pode fazer análise do discurso ecologicamente, vale dizer, vou propor a análise do discurso ecológica (ADE). Por ser parte da linguística ecossistêmica, um nome alternativo para ela é linguística ecossistêmica crítica (LEC), por sugestão tanto da ‘análise do discurso crítica’ quanto da ‘ecolinguística crítica’. Eu não encontrei nenhuma publicação em português em que a expressão ‘análise do discurso ecológica’ tivesse sido usada. O máximo que vi foi ‘análise de discurso ecológico’, estudo que pode ser feito de qualquer perspectiva, inclusive da filosófica. Em uma breve pesquisa na internet constatei que a expressão ecological discourse analysis já foi usada pelo menos por Michael Zukosky, da Temple University, no contexto de seus estudos em antropologia linguística, ecologia política e etnografia da tecnologia e da ciência. Mas, ele quis dizer ‘analysis of ecological discourse’, ou seja, ‘análise de discurso ecológico’, análise que tem por objetivo os discursos ambientalistas, coisa que pode ser feita de diversas perspectivas, sobretudo da da análise do discurso tradicional. Encontrei a expressão também em francês (analyse du discours écologique), espanhol (análisis del discurso ecológica) e alemão (ökologische Diskursanalyse), mas apenas como citação. Não me deparei com nenhum ensaio sobre o assunto. O fato é que muito provavelmente esta seja a primeira vez que se propõe uma análise do discurso que erija seu arcabouço epistemológico no seio da ecologia. No que segue, usarei preferencialmente a expressão ‘análise do discurso ecológica’ e respectiva sigla, ADE, mas, eventualmente poderá aparecer também a designação alternativa ‘linguística ecossistêmica crítica’ e respectiva sigla, LEC, e até a sigla composta ADE/LEC.
As primeiras reflexões sobre linguística ecossistêmica crítica foram feitas em Couto (2013), tendo por base os conceitos da ecologia geral e os que já vinham sendo introduzidos na linguística ecossistêmica. Com efeito, tem sido dito em diversas ocasiões que a linguística ecossistêmica abriga também estudos de ecolinguística crítica, linguística ambiental e/ou linguística ecocrítica, uma vez que leva em conta tando a endoecologia quanto a exoecologia da língua. Sua abordagem é holística. Enfim, contrariamente à esmagadora maioria dos ecolinguistas, esta versão da disciplina leva o conceito de abrangência, holismo e multidisciplinaridade a suas últimas consequências. A linguística ecossistêmica estuda os fenômenos da linguagem sob qualquer forma pela qual possam aparecer.
Diante do que acaba de ser dito, é preciso mostrar como e porque eu tenho certeza de que na ecologia geral e nas suas subdivisões filosófica e sociológica, entre outras, temos grande parte dos conceitos (se não todos) que se fazem necessários para analisar discursos. Comecemos do conceito ecológico mais abrangente, o de ecossistema, que é o todo formado por um população de organismos e suas interações com o meio e entre si. É em seu interior que se desenrola todo o drama que constitui a base de minha argumentação. Todos os demais conceitos emergem de seu interior, o que já justificaria o nome 'linguística ecossistêmica'. Sabemos que ele é encarado como um todo, motivo pelo qual o holismo é o segundo conceito mais abrangente. Ecologicamente, o objeto de estudo deve ser surpreendido em sua totalidade, uma vez que em seu interior nada está isolado. Quando nos atemos a apenas uma faceta dele, facilmente podemos cair na parcialidade, parente próxima do partidarismo e do sectarismo. No interior do todo do ecossistema, o que temos é uma diversidade de seres e fenômenos, entre os quais se dão inúmeras inter-relações. Aliás, estas últimas são definidoras do ecossistema, como nos diz qualquer manual de introdução à Ecologia. Não é necessário recorrer a nenhuma ideologia extraecológica (religiosa, marxista, política, partidária, feminista etc.) para se praticar ADE. A versão da ecolinguística chamada linguística ecossistêmica já encontra, na própria fonte de que emana, tudo de que precisa para erigir seu arcabouço epistemológico, assim como todos os recursos heurísticos para se avaliar criticamente todo e qualquer fenômeno linguístico, aí inclusas as análises ecológicas de qualquer tipo de texto, ou seja, não só de textos ambientalistas. Essa abordagem implica a assunção de uma ideologia ecológica, ou ideologia da vida, se é que vamos falar em ideologia. Ela se apoia nas ideias da Ecologia Profunda, que, como disse seu criador, o filósofo norueguês Arne Naess, não é apenas descritiva e crítica, mas também prescritiva. Ela luta pelos seres vivos de todas as espécies, criticando quem vai contra a defesa da vida na face da terra. Seu ponto de honra é a defesa intransigente da vida. Ela se posiciona contra tudo que vai à vida, em todas as suas formas, e, consequentemente, contra tudo que pode trazer sofrimento. Porém, sempre pacificamente, sem violência, como fazia Mahatma Gandhi, uma das fontes de inspiração da Ecologia Profunda. Afinal, para falar sério não é necessário falar de cara feia.
No caso dos humanos, o sofrimento pode ser físico (natural), mental ou social. Sobre o sofrimento físico não é necessário falar, pois qualquer ato que o provoque salta à visa, não é necessário fazer grandes análises para se chegar à conclusão de que um ato de pedofilia traz sofrimento ao (à) menor de que é vítima, para não falar em violências que causam ferimentos. Os assassinatos cruéis causam o maior tipo de sofrimento que se possa imaginar, a morte. Sofrimento mental pode ser causado pelo assédio moral de um superior ao inferior no ambiente de trabalho, por xingamentos, pelas agressões verbais de um marido bêbado e/ou violento à mulher e/ou aos filhos. Sofrimento social é, por exemplo, expor alguém ao ridículo. É muito importante, porém, lembrarmo-nos de que não são só os humanos que podem ser submetidos ao sofrimento. Os demais animais também. No prefácio a Couto (2007), vemos um relato sobre sofrimento infligido a animais em fazendas do interior. Mas, não são só os animais domésticos que não devem ser submetidos a situações que causam sofrimento. Os demais também. A caça e a pesca lúdicas estão nesse caso. Quando o rei da Espanha foi caçar (matar) elefantes, o objetivo era a “diversão” do monarca. O sofrimento dos elefantes não era posto em questão, como se pode ver muito bem analisado em Ramos (2013).
Um exemplo interessante de situação que provoca sofrimento em todos os sentidos (físico, mental, social) é a situação da mulher em alguns países muçulmanos radicais. Como sabemos, ela tem muito menos direitos do que o homem, e muito mais obrigações do que ele. Caso ela não obedeça, pode ser exposta à execração pública, ser apedrejada e até executada de maneira que para nós parece cruel e perversa. Alguns críticos ocidentais, inclusive alguns antropólogos e sociólogos, alegam que isso faz parte da cultura muçulmana, aceita pelas próprias mulheres muçulmanas. No entanto, lembra Arne Naess, nesses próprios países existe pelo menos uma pequena minoria que é contra esse tipo de comportamento em relação à mulher. É essa minoria que deve receber nosso apoio porque ela luta contra o sofrimento das mulheres em questão. Deve ficar bem claro que, para a ADE, essa defesa não é necessariamente uma atitude feminista. É muito mais do que isso. É luta contra atos que causam sofrimento a um ser humano, que, antes de o ser é um ser vivo, que sofre. O que é mais, por ser um ser vivo social, sofre não só fisicamente, mas também mental e socialmente. Para a linguística ecossistêmica, que segue a Ecologia Profunda, o feminismo é importante, mas, se for radicalizado, torna-se parcial, partidário, a ponto de ficar incondicionalmente contra o homem, atitude inteiramente equivocada. Em casos extremos, essa ideologia pode levar a considerar o homem em geral como um antagonista, um inimigo, não como um ser humano que existe para ser aliado e parceiro da mulher. Já ouvimos falar de um boato segundo o qual, na época do auge do radicalismo feminista, um grupo de mulheres da Holanda tinha por objetivo sequestrar homens, “usá-los” e depois matá-los. Nem é preciso dizer que se trata de uma atitude fanaticamente radical, fundamentalista, que vai frontalmente contra a ideologia ecológica. 
Vejamos alguns temas, entre inúmeros outros, a que a ADE pode se dedicar preferencialmente, bem como alguns conceitos ecológicos que podem ser apropriados por ela. Em Fill (1993) já encontramos sugestões de uma série de assuntos que podem (e devem) ser estudados por uma análise do discurso ecológica, mesmo que avant la lettre. Em primeiro lugar, temos o antropocentrismo, que tem levado os humanos a se acharem no direito de devastar tudo em prol do próprio bem-estar. Em segundo lugar, vem a questão das línguas minoritárias em contraposição às línguas dominantes que ameaçam sua existência. Da perspectiva da ADE, devemos lutar pela sobrevivência das primeiras porque sua extinção implica a descaracterização da identidade de seus falantes, que é o mais importante, o que os faz sofrer. Isso leva a outro tema muito importante, que é o culto do desenvolvimentismo. Desenvolver é procurar crescer, ir de um estado “menor” para outro “maior”, o que implica que o grande é melhor do que o pequeno. Na cultura ocidental, os dois conceitos se opõem, é um ou o outro. Na oriental, como no taoísmo (Couto, 2012: 23-47), e na ecologia profunda, eles são complementares. Vejamos o que está dito em um poema de Ralph Waldo Emerson (1803-1882), em uma disputa entre a montanha e o esquilo. Este disse àquela: Se eu não sou tão grande como você / Você não é tão pequena como eu. Vale dizer, o grande não é necessariamente melhor do que o pequeno. Pelo contrário, o grande precisa do pequeno para se afirmar como tal.
Em Couto (2007: 347-356), há uma longa lista de atitudes preconceituosas que causam sofrimento no público alvo. A primeira é o já mencionado antropocentrismo, que consiste em colocar os humanos no centro do universo, tudo mais existindo apenas parar servi-los. Ele pode se mostrar no que tange à natureza não viva, como ao dizermos que um dia ensolarado é bom tempo, e, se chove, mau tempo. Em se tratando de natureza vegetal, consideramos erva daninha ou mato as plantas que não nos são úteis, mas teimam em nascer junto com as plantações, e assim por diante.  A segunda é o etnocentrismo, que consiste em considerar o que existe em nossa cultura melhor do que o que existe na dos outros, mas não na nossa. O androcentrismo seria uma terceira manifestação da linguagem preconceituosa, uma vez que traz sofrimento à mulher. Algumas de suas variantes recebem o nome de machismo, sexismo e outros. Como se vê, a justa luta das feministas se enquadra aqui também. Ela está no contexto mais amplo da igualdade de direitos e deveres dos seres humanos, independentemente de sexo. Uma quarta seria o classismo ou aulicismo, que consiste em considerar a linguagem das elites urbanas como melhor do que a dos habitantes da zona rural. Tanto que desde os primórdios da língua portuguesa, os corteses eram os habitantes da corte, ao passo que os da vila eram os vilões. Tudo que se refere à vida rural está associado a rude ou rústico, palavras que têm a mesma origem. É o caso de populacho, plebe, pagão, gentio etc., por oposição à elite, ou escol. Os habitantes da cidade agiriam com urbanidade, teriam civilidade (de civis = cidade em latim).
Nesse contexto, poderíamos mencionar o fenômeno conhecido entre os sociolinguistas como hipercorreção. De tanto ouvir dos habitantes da zona urbana que praça e carça são expressões “erradas” e que o “correto” é placa e calça, respectivamente, os habitantes da zona rural acabam se atrapalhando e passam a substituir todos os “r” que ocorrem nessas posições por “l”, produzindo formas que os linguistas têm chamado de “hipercorretas”, tais como “Cleusa” (historicamente), “malmita”, “galfo” etc. Como lhe dizem que veio e faia devem ser substituídos por velho e falha, respectivamente, colocam o “lh” mesmo onde há “i” até mesmo no português estatal (padrão), como “melha” por “meia”, “pilhor” por “pior” etc. Ora, isso é resultado de atitudes discriminatórias contra o modo de falar dos habitantes da zona rural, e toda discriminação produz sofrimento social, uma vez que ridiculariza o discriminado.
Ainda no caso da linguagem rural, em que se diz nóis vai trabaiá, considerá-la como errada não é uma atitude ecologicamente correta. Na verdade, não se trata de linguagem “errada” nem de uma “deformação” da “boa” linguagem do português estatal (padrão). Pelo contrário, é a linguagem rural que é concreta, real, existe efetivamente como meio de comunicação entre os habitantes das diversas comunidades rurais.  É a linguagem estatal que é uma abstração feita a partir das diversas variedades linguísticas que constituem o que chamamos de língua portuguesa como um todo. Assim se poderia dizer que ela não está presente em atos de interação concretos que se dão entre membros de comunidades de fala concretas. Em suma, a linguagem rural e a da periferia das cidades, que é uma continuação dela, é pura e simplesmente uma manifestação da diversidade dialetal existente no seio do ecossistema linguístico brasileiro. Diversidade significa riqueza, como vemos na ecologia geral.
Passando à consideração de alguns conceitos ecológicos que podem (e devem) ser usados na análise de textos, começamos justamente pelo de diversidade. Sua aceitação implica uma atitude de tolerância para com o outro, sobretudo quando é diferente. A não aceitação implica intolerância, o que pode conduzir à agressividade e à violência, sobretudo contra as minorias de todos os tipos. Sua aceitação pressupõe uma política de cooperação e harmonia, conceito que já está previsto na própria ecologia biológica, no caso, nas relações harmônicas, que podem se dar não só intraespecífica, mas também interespecificamente. No primeiro caso, temos as relações entre os seres humanos; no segundo, entre eles e seres de outras espécies de animais. O contrário seria a subordinação dos mais fracos aos mais fortes e a consequente imposição da vontade dos segundos sobre os primeiros. Como se vê, aqui entra a questão do poder. Isso pode levar ao fundamentalismo que, como sabemos, frequentemente chega até à violência. Por isso, a Ecologia Profunda que nós sigo recomenda uma atitude à la Gandhi, isto é, firme, porém, não violenta.
Intimamente associada à diversidade temos a questão das interações (inter-relações, relações). No interior do ecossistema, nada está isolado, tudo está de alguma forma relacionado a tudo, direta ou indiretamente. Havendo uma diversidade de seres e inter-relações, pode-se dizer do próprio ecossistema que ele é uma cadeia ou teia de inter-relações que se dão entre organismos, entre organismos e meio, e assim por diante. Haverá tanto mais relações quanto mais diversidade de organismos e de meio houver no ecossistema, de modo que os dois conceitos estão intimamente inter-relacionados. Aí temos mais um tipo de inter-relação. As relações estão intimamente associadas à harmonia do todo, uma vez que é em seu interior que elas se dão. Elas são multilaterais, multipolares e policêntricas. Os totalitarismos, ao contrário, são monocêntricos e centrípetos, motivo pelo qual muitas vezes levam ao conflito, uma vez que não aceitam a diversidade que as inter-relações multilaterais implicam.
Ainda na dinâmica das inter-relações, há uma constante adaptação de organismos ao meio e do meio aos organismos, além das adaptações dos próprios organismos entre si. A adaptação do meio aos organismos era menor no começo filogenético da vida, mas vem se intensificando a cada dia que passa, sobretudo devido ao desenvolvimento tecnológico. O mundo e a cultura (inclusive a língua) são dinâmicos, estão sempre mudando, se adaptando às novas situações que a natureza (e a cultura) lhes apresenta. Não se adaptar é oferecer resistência, o que pode também levar à desarmonia, ao conflito e à violência, quer contra outros seres humanos, quer contra os demais seres vivos e à natureza em geral, como se vê nas ações predatórias. A visão darwinista falava em competição e sobrevivência do mais forte. As novas pesquisas em ecologia têm mostrado que sobrevive mais aquele que se adapta mais, não necessariamente o mais forte. Se fosse assim, os dinossauros não teriam desaparecido. Adaptar-se é procurar viver em harmonia, conceito central do taoísmo e, indiretamente, da Ecologia Profunda (Couto, 2012: 23-67).
Adaptação é a cara da moeda cuja coroa é a evolução. Hoje em dia é sobejamente sabido que a evolução se dá ciclicamente. Tudo na natureza se move em ciclos. Veja-se a alternância dia/noite, as estações do ano, o ritmo biológico de nosso organismo, entre outros. Na própria cultura, aí inclusa a linguagem, as mudanças se dão por ciclos. Basta observar a moda. Quantas vezes já não vimos os estilistas, os que ditam a moda, dizerem que agora o chique é o que se fazia nos anos 60 ou nos anos 80, por exemplo? Basta criar-se um termo para designar isso, no caso retrô. Em Couto (2012: 179-199) há alguns exemplos de evolução cíclica na literatura e na linguagem. Com isso, entramos no domínio da reciclagem. Ela tem a ver diretamente com o consumismo capitalista desenfreado. Só recicla quem tem consciência de que o consumismo e a descartabilidade são prejudiciais à manutenção da vida na face da terra, sobretudo a longo prazo. Para agir assim, é necessário que se pratique uma economia sustentável, que leve a ecologia em consideração.
A ideologia ecológica defende os três ‘r’, ou seja, redução, reutilização e reciclagem. Descartar tudo em vez de reduzir, reutilizar e reciclar exige uso e abuso dos recursos da natureza, e não só da natureza viva. Nossa intervenção nela está cada vez mais predatória. Isso traz sofrimento aos seres vivos, como o consumo exagerado de carne, que exige o sacrifício de centenas, de milhares, de milhões de animais. A própria criação extensiva de gado de corte, e até de leiteiro, exige o estabelecimento de imensas pastagens, com uma única espécie de gramínea ou capim, a braquiária, por exemplo, o que implica um sacrifício na diversidade da flora e até da fauna. Para reduzir a última, como no caso dos insetos, recorre-se aos pesticidas. Aqui a redução é prejudicial, uma vez que reduz a diversidade de seres vivos no ecossistema, o que traz sofrimento a esses seres.
Voltando à visão holística, ao todo do ecossistema, notamos que nessa qualidade ele se inter-relaciona com os ecossistemas vizinhos, fornecendo e recebendo matéria e energia deles. Dito em outras palavras, esse todo apresenta a característica da abertura, às vezes também chamada de porosidade. Essa característica do ecossistema, juntamente com a diversidade, enseja a tolerância para com os de outras espécies, outros grupos étnicos, vai contra o etnocentrismo, o racismo e os demais “ismos” acima mencionados. Ela nos ensina que nada está isolado, portanto, recebe influência de fora, além de enviar seus influxos para fora. Ela nos leva a aceitar a ideia do outro, mesmo quando não concordamos com ela. Aceitá-la não no sentido de adotá-la, mas no de respeitá-la. Afinal, o certo e o errado são conceitos criados socialmente, logo, são relativos. Além de esses conceitos não existirem na natureza, variam de comunidade para comunidade e de um segmento social para outro.
Existem diversos outros conceitos ecológicos de que se pode lançar mão na ADE. Entre eles, temos relações harmônicas versus relações desarmônicas, tanto intraespecíficas quanto interespecíficas. Entre as relações harmônicas interespecíficas, poderíamos mencionar o inquilinismo, o comensalismo e o mutualismo. No que tange às relações desarmônicas interespecíficas, sobressaem-se o predatismo (predador versus presa) e o parasitismo. Entre as relações desarmônicas intraespecíficas, poderíamos trazer à baila a competição, que se dá também nas interespecíficas. Aquilo que se chama ‘comunhão’ (pressuposto para a interação comunicativa) se enquadra nas relações harmônicas intraespecíficas. Enfim, na própria ecologia geral, bem como em suas vertentes filosófica, sociológica etc., já temos os conceitos necessários e suficientes para efetuarmos estudos críticos sobre textos que falam de diversos assuntos. Nos dias atuais não precisamos mais ter medo do biologismo. Usar a ecologia geral como base para os estudos culturais (e linguísticos) é assumir o ponto de vista da vida, justamente estudada pela Biologia, de que a ecologia geral (e a linguística) faz parte.
Uma vez que no próprio âmbito da Ecolinguística já existe a possibilidade de se fazerem análises e críticas de textos, de discursos, sobretudo antiambientalistas, como fazem a ‘ecolinguística crítica’, ‘a linguística ambiental’ e a ‘linguística ecocrítica’, é necessário que demos algumas razões para se propor a linguística ecossistêmica crítica ou análise do discurso ecológica. Com efeito, a ecolinguística crítica já tem estudado, assim como a análise do discurso tradicional, temas como os recém-mencionados, além do feminismo, do ‘racismo’, da ‘homofobia’ e outras. Tudo isso é muito importante. No entanto, há algo maior que todos esses temas, a que estão subordinados, vale dizer, a defesa da vida na face da terra, em que entra a luta contra tudo que traz sofrimento físico, mental ou social, já que somos seres biopsicossociais. O feminismo, a luta dos movimentos negros e outras devem ser respeitadas não por se tratar de “mulheres” e “negros”, respectivamente, mas por se tratar de seres humanos que sofrem com alguns tratamentos discriminatórios. Destacá-los como devendo ser protegidos por serem mulheres e negros já á uma atitude separatista, que pode estimular o antagonismo. Devemos proteger todas as espécies vivas (animais e vegetais) não em detrimento dos chamados “animais racionais”. Devemos defender os direitos da mulher e dos negros não por serem mulheres e negros, mas por serem seres humanos iguais a quaisquer outros. Ser a favor da vida animal e vegetal não é ser contra a vida dos humanos. Pelo contrário, é inserir a causa deles em uma luta maior, uma vez que se as demais espécies desaparecerem nós também desaparecemos. O mesmo tipo de argumento vale para outras “ideologias” atuais. Lutar contra o antropocentrismo, o androcentrismo e o classismo é lutar pela vida, é ir contra algo que provoca sofrimento.
Devemos lutar inclusive contra a depredação da natureza não animada. Se não cuidarmos das águas, elas podem ser poluídas a tal ponto que podem envenenar não só a nós, mas também aos demais seres vivos. Elas podem mesmo desaparecer, com o que todos pereceriam. Do mesmo modo devemos ter cuidado para não poluir o ar demasiadamente. Do contrário não teremos oxigênio para respirar. Não devemos usar determinados produtos que causam o efeito estufa, pois, do contrário, poderemos morrer todos assados ou, então, com câncer de pele. Não se trata de uma visão apocalíptica nem catastrofista. Trata-se de ser realista. O que já vimos até agora aponta claramente para essa direção. 
Vejamos alguns argumentos que justificam, a nosso ver, a necessidade de uma análise do discurso ecológica, complementando a ecolinguística crítica (EC). Primeiro, a ADE/LEC parte do ecossistema, o locus dos seres vivos. A EC não necessariamente. Ela até pode fazê-lo. No entanto, seu ponto de vista privilegiado é a ideologia política. Ora, ideologia direciona, é ‘tendenciosa”, tanto que Marx a chamou de “falsa consciência”. De fato, a EC é eminentemente de cariz político, ao passo que a ADE é ecológica, logo, ligada à biologia, a ciência da vida. Segundo, a EC usa conceitos ecológicos consciente e explicitamente como metáfora. A ADE é uma disciplina da ecologia geral. Os conceitos ecológicos não são transplantados da ‘ecologia’ para ela. Eles são partes naturais de seu arcabouço epistemológico. Praticar ADE é praticar Ecologia. Terceiro, notamos que às vezes, a EC se confunde com a AD em geral, como mostram alguns trabalhos publicados. A ADE, nunca. Por ser ecológica, ela tem um viés, sim, mas o viés da defesa da vida. Quarto, para a ADE, e para a visão ecológica de mundo em geral, essas questões devem ser incluídas no contexto mais amplo e abrangente da vida, da preservação dela na face da terra, bem como no da recusa de tudo que pode trazer sofrimento.
Gostaria de terminar lembrando algumas das principais questões que precisam ser levadas em conta por quem quer que seja que deseje estudar, avaliar, analisar qualquer texto ou discurso da perspectiva da ADE. Primeiro, é preciso indagar sobre o contexto em que o assunto do texto/discurso a ser examinado está inserido. Na linguística ecossistêmica, a que ela pertence, a resposta a essa pergunta já traz o referencial e o universo de discurso de que a questão faz parte, como se fosse o ecossistema em que as relações a ser examinadas estão incluídas. Com isso, já somos levados à segunda questão, a do holismo. O assunto examinado deve ser encarado no âmbito da totalidade das interações de que participa. Isso leva à terceira questão, que é a da diversidade. Esta tem toda uma série de consequências, algumas das quais estão discutidas acima no presente capítulo. Uma quarta questão é a da evolução. Tanto a natureza quanto a cultura e a mente estão sempre mudando. Em quinto lugar, nota-se que essa evolução é o resultado de uma constante adaptação às novas circunstâncias, às novas configurações da rede de inter-relações. Tudo que não se adapta é excluído, sucumbe ou desaparece. Em sexto lugar, sabe-se que isso ocorre porque o todo delimitado pelo observador apresenta a característica da abertura ou porosidade. Ele está em uma perene interação com o que se encontra em volta. Em sétimo lugar, os humanos precisam ter o cuidado de apenas usar os recursos da natureza, não abusá-los. Nela “nada se cria, nada se forma; tudo se transforma”, há uma reciclagem constante dos recursos disponíveis. Como os humanos têm consciência, precisam também reduzir e reutilizar tudo que tiverem que utilizar. Em oitavo lugar, é bom lembrar que essa atitude leva à sustentabilidade, à garantia de que as gerações futuras também poderão satisfazer suas necessidades. Em nono lugar, é necessário lembrar que só age assim quem tem uma visão de longo prazo, que, de novo, é a da natureza, que não tem pressa. Por fim, nota-se em todas essas questões que a ADE/LEC não é apenas descritiva e crítica relativamente ao objeto de estudo. Pelo contrário, ela pratica o prescritivismo, uma vez que segue a ideologia ecológica (ideologia da vida) da Ecologia Profunda, que combate com ardor tudo que pode trazer sofrimento.

Referências
Couto, Hildo Honório do. 2007. Ecolinguística: Estudo das relações entre língua e meio ambiente. Brasília: Thesaurus.
_______. O tao da linguagem: Um caminho suave para a redação. Campinas: Pontes.
_______. 2013. O que é ecolinguística, afinal? Cadernos de linguagem e sociedade v. 14, n. 1, p. 302. 
Fill, Alwin. 1993. Ökologie: Eine Einführung. Tübingen: Gunter Narr Verlag. 
Ramos, Rui. 2013. O rei de Espanha foi caçar elefantes: A construção discursiva do evento nos media portugueses. Cadernos de linguagem e sociedade v. 14, n. 1.

NOTA
Sob forma revista e drasticamente ampliada, este texto saiu no livro Antropologia do imaginário, ecolinguística e metáfora (Brasília: Thesaurus, 2014, p. 27-41), organizado por Elza K. N. do Couto, Ema M. Dunck-Cintra & Lorena A. O. Borges, com o título de: "Linguística ecossistêmica crítica ou Análise do discurso ecológica".
A versão publicada no livro foi traduzida para o inglês e está disponível sob o título de “Critical ecosystemic linguistics” em:
http://ecosystemic-linguistics.blogspot.com.br/2015/11/ecological-discourse-analysis-eda.html