sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Comunhão


Hildo Honório do Couto
Universidade de Brasília
(Professor Emérito)


Introdução
Assim que tomei conhecimento da "função fática" da linguagem em Jakobson (1960: 126-127), pensei que o conceito poderia ser utilizado para explicar o cimento que une os indivíduos em sociedade, além das funções que o próprio Jakobson lhe havia atribuído. É bem verdade que as acepções em que o autor utilizou a expressão não servem diretamente para isso. No entanto, eu antevia as possibilidades que o conceito oferecia, como ficou claro mais tarde com o advento do ramo brasileiro da Ecolinguística chamado Linguística Ecossistêmica. Comecemos pelas definições que o dicionário dá do termo. 
O Aurélio apresenta as seguintes acepções de "comunhão": 1. Ato ou efeito de comungar: "Que é a reza senão a comunhão com o infinito?" (Geraldo França de Lima, Branca Bela, p. 17). 2. V. Eucaristia (1). 3. A administração ou a recepção da Eucaristia. 4. Participação em comum em crenças, interesses ou ideias: "os lábios ficaram colados muito tempo, em silêncio, completando ...., a comunhão perfeita das suas almas" (Eça de Queirós, Os Maias,11, p. 261). 5. Conjunto daqueles que comungam nos mesmos ideais, crenças ou opiniões; comunidade. Uma das acepções encontradas no dicionário francês Petit Robert também me pareceu bastante interessante. Ela diz que comunhão é "estar em comunhão de ideias e de sentimentos”.
De uma forma ou de outra, todas essas acepções têm a ver com o sentido atribuído ao termo no presente ensaio, embora algumas apresentem mais afinidades do que outras. Assim, o ato ou efeito de comungar (1), remete ao verbo comungar que, ainda de acordo com o Aurélio, significa: 1. Administrar a comunhão (O sacerdote comungou os fiéis). 2. Receber ou tomar a comunhão (Contrito, comungou a hóstia). 3. Receber ou tomar o sacramento da Eucaristia ("queria confessar-se e comungar, tinha medo de morrer em pecado", Coelho Neto, Sertão, 330). 4. Pertencer a grupo ou sociedade que tem as mesmas ideias religiosas, políticas, literárias, científicas etc. (Sempre comungou no Partido Liberal). 5. Ter entrada ou parte em; participar (Comunga nos ideais da liberdade). 6. Por-se ou ficar em contato; ligar-se; unir-se; comunicar-se (Poesia é um estado de alma religioso e metafísico em que o homem comunga diretamente com a divindade. Alberto Ramos, Prosas de Ariel, p. 135). A acepção 3 do Aurélio remete a comunicação, da perspectiva do receptor. A de número 4 é mais interessante ainda, pois ter "crenças, interesses ou ideias" em comum é estar ligado mentalmente, que tem a ver diretamente com a interpretação que a Linguística Ecossistêmica dá ao conceito. A acepção 5 nos leva ao que chamarei de comunhão sistêmica, aquilo que faz com que os habitantes das regiões em que se fala uma língua (comunidade de língua) tenham o sentimento de compartilhá-la, mesmo que não se conheçam pessoalmente nem estejam comunicando no momento. A definição do Petit Robert tem mais afinidades ainda com o conceito de comunhão linguístico-ecossistêmica. 

Histórico do conceito
Vejamos um pequeno histórico do conceito de comunhão no estudo dos fenômenos da linguagem. Até onde pude investigar, quem primeiro falou em comunhão no contexto da comunicação foi o antropólogo inglês Bronislaw Malinowski. O texto saiu como apêndice ao conhecido livro de Ogden & Richards, The meaning of meaning (1923), como se pode ver em Malinowski (1972). Partindo do pressuposto de que a linguagem só é plenamente entendida no contexto de uma situação específica, ele afirma que “a fala é um meio necessário de comunhão; é o instrumento indispensável para criar os vínculos do momento, sem os quais é impossível a ação social unificada” (p. 307). Para ele, “romper o silêncio, a comunhão de palavras, é o primeiro ato para estabelecer laços de amizade, a qual só é consumada na partilha do pão e comunhão do alimento” (p. 311). Ele chamou esse tipo de interação de comunhão fática, “um tipo de fala em que os laços de união são criados pela mera troca de palavras” (p. 311). Nessa situação, “não é preciso ou, talvez, nem deva até haver coisa alguma a comunicar. Desde que existam palavras para trocar, a comunhão fática leva selvagens e civilizados, por igual, para uma agradável atmosfera de intercurso polido, social” (p. 312). Na verdade, veremos que a comunhão precede a fala e até pode prescindir dela. Em várias situações, ela existe independentemente da troca de palavras. Pelo contrário, a troca de palavras, ou seja, a interlocução é que precisa ser apoiada por uma atitude de comunhão prévia.
Quatro anos mais tarde, Grace Andrus de Laguna retomou o termo em seu livro Speech: Its function and development (1927). De acordo com essa autora, “a língua continua exercendo a função mais simples [da linguagem] que Malinowski chamou de ‘comunhão fática’. Ela serve com muita frequência meramente para nos manter em rapport afetivo uns com os outros. Nós passamos o dia com nosso vizinho apenas como uma expressão de boa vontade e para despertar e manter uma atitude amigável para com ele” (p. 244). Com isso, ela está expressando uma concepção próxima à de número 2 do Petit Robert, que é a que eu adoto. Infelizmente, porém, a autora parece confundir ‘comunhão’ com uso estereotipado de palavras. Falando dos “gritos e chamados dos animais”, Laguna diz que “essa troca vocal é do primeiro tipo de ‘comunhão fática’, que ajuda a cimentar os laços da vida em comum. Aqui, sim, ela retoma o rumo que nos interessa, ou seja, ao ver a comunhão como um tipo de cimento social (p. 278). O fato importante é que Laguna foi certamente a terceira pessoa a falar de comunhão no contexto da linguagem.
Quase quarenta anos mais tarde (em 1960), Roman Jakobson retomou o termo de Malinowski no contexto de suas seis funções da linguagem, falando em “função fática” da linguagem, Jakobson disse que essa função "pode ser evidenciada por uma troca profusa de fórmulas ritualizadas, por diálogos inteiros cujo único propósito é prolongar a comunicação". Ele afirma ainda que ela ocorre tipicamente também em aves falantes, de modo que "a função fática é a única que compartilham com os seres humanos". Acrescenta que a interação fática é a primeira das crianças, afirmando que “elas têm tendência a comunicar-se antes de serem capazes de enviar ou receber comunicação informativa” (Jakobson, 1969: 126-127). Esta última asserção se aproxima de nossa concepção de comunhão, pois ela dá a entender que pelo menos parte da comunhão precede a comunicação por palavras.
Uma grande inovação de Jakobson é o fato de ter distinguido três “momentos” em estados de comunhão ou, em seus termos, na função fática da linguagem. Primeiro, há expressões para abrir o canal de comunicação, o que ficava bem claro na comunicação telefônica (alô!). Segundo, há expressões para manter o canal aberto, ou checar se ele ainda está aberto (tá, sim, hum-hum etc.). Terceiro, existem expressões para fechar o canal de comunicação, encerrar a interação comunicativa (tchau!). No modelo de Jakobson, a função fática é a abertura, manutenção e fechamento do canal de comunicação. Esses três momentos são apropriados pela comunhão linguístico-ecossistêmica. No compartilhamento de sentimentos entre indivíduos que se veem juntos, ela tem o mesmo papel de preparar o cenário em que a comunicação pode se dar. Isso implica os momentos de encetar, manter e encerrar a comunicação.
Benveniste (1970: 17-18) também tangenciou o conceito de comunhão. Falando de Malinowski, ele diz que “ele esboçou sua configuração partindo do papel que aí tem a linguagem. Trata-se de um processo em que o discurso, sob a forma de um diálogo, estabelece uma relação entre os indivíduos”. Como os demais autores já mencionados, Benveniste acha que só há comunhão via linguagem, pois é ela que “estabelece uma relação entre os indivíduos”, ela é uma “comunhão de ideias e de sentimentos”. Uma vantagem deste texto é que o autor reproduz três parágrafos do ensaio original de Malinowski, embora sem nenhum tipo de comentário. Por isso, é uma fonte para quem não tiver acesso ao texto de Malinowski.
Outro autor francês que fala em comunhão no contexto da comunicação é Henri Gobard. Não vamos entrar nos pormenores de sua “análise tetraglóssica”. Basta lembrar que, para ele “a condição sine qua non de todo desenvolvimento humano é a relação afetiva em que a linguagem serve de suporte a uma comunhão e não a uma comunicação” (Gobard 1976, p. 23). De acordo com esse autor, “a criança que diz 'mamãe' na presença de sua mãe não comunica nada, mas comunga toda sua relação” (p. 27). Gobard acrescenta que “o espírito de comunhão [...] está necessariamente ligado a uma comunidade de pequena dimensão” (p. 28). Por fim, diz ele, “cada grupo natural secreta assim sua própria linguagem de comunhão, segundo a qual, o que importa não é tanto comunicar, pois todos os membros do grupo sabem as mesmas coisas, mas confirmar o que já se sabia” (p. 28). A propósito, a língua francesa dispõe de um dito popular que expressa muito bem essa ideia, ou seja, parler de la pluie et du beau temps, ou seja, 'falar da chuva e do tempo bom'. O próprio Gobard menciona a expressão “il fait beau, hein”, que significa algo como 'o tempo está bom, não é?".
O que está dito nessa última afirmação de Gobard se aproxima bastante do conceito de comunhão da linguística ecossistêmica. Veremos que, para esta, o que importa não é necessariamente trocar palavras. Na verdade, a troca de palavras, ou seja, a comunicação é que precisa ser precedida de um estado de comunhão. Como outros autores ressaltaram, nessas situações fala-se para fugir de um incômodo silêncio.
Há outros termos, propostos por outros autores, que se referem a algo muito parecido com a comunhão. É o caso do sociolinguista e crioulista William Samarin, que usou o termo “simbiose” ou confraternização ("fraternization", referindo-se ao francês "fraternisation"). Falando do encontro de aloglotas que dá lugar aos chamados pidgins, ele diz que "algum tipo de simbiose é necessário para que um pidgin se desenvolva" em uma situação de contato de línguas. Entre as partes contactantes, havia "todo um conjunto de relações que faziam com que a comunicação se tornasse necessária ou desejável" (Samarin, 1988: 160-161). Esse “conjunto de relações” não é nada mais nada menos do que um estar junto e querer cooperar. Por isso, o termo ‘simbiose’ poderia perfeitamente ser usado no lugar de comunhão. Não obstante isso, prefiro ‘comunhão’ devido a suas ligações óbvias com comunicação, além de o termo fazer parte de uma tradição mais longa, no caso, a religiosa.
Vejamos, por fim, duas obras mais próximas de nossa época que falam em comunhão fática. A primeira é a de Coupeland, Coupeland & Robinson (1992). Eles começam salientando que o conceito tem sido usado nas áreas de sociolinguística, semântica, estilística e comunicação, salientando que em seu uso objetivos relacionais sobrepujam os de faticidade e instrumentalidade. Os autores fazem uma pesquisa sobre o uso de How are you? junto a pessoas idosas como uma forma de abrir o canal de comunicação ou, nos nossos termos, de estabelecer comunhão, para que haja comunicação. O Segundo é Senft (1995). Ele é uma boa fonte de consulta no que concerne à conceituação de comunhão, além de apresentar a opinião de diversos outros autores sobre o assunto.

Comunhão na Linguística Ecossistêmica
Praticamente todos os autores que mencionamos partem da ideia de que comunhão pressupõe língua. Para todos eles, exceto par Jakobson (ele admite comunicação fática entre as aves), comunhão ou comunhão fática só existe mediante algum tipo de troca de palavras. Para Malinowski, por exemplo, os “laços de união são criados pela mera troca de palavras”, ou seja, a comunhão só se manifesta por meio delas. Laguna afirma que a linguagem (troca de palavras) “serve com muita frequência meramente para nos manter em rapport afetivo uns com os outros”, vale dizer, esse rapport (comunhão) é estabelecido pela troca ritual de palavras. Para Jakobson, a comunhão fática (comunicação fática) se mostra por meio de “uma troca profusa de fórmulas ritualizadas”. As mesmas opiniões são expressadas por Benveniste e Gobard, entre outros. De todos os autores citados acima, o que se aproximou mais da concepção linguístico-ecossistêmica de comunhão foi, estranhamente, William Samarin, mesmo sem ter usado o termo “comunhão”, mas o de “simbiose”. Sua asserção de que "algum tipo de simbiose é necessário para que um pidgin se desenvolva" leva diretamente a comunhão como a defendemos. Com efeito, os pidgins emergem numa situação de encontro de falantes de línguas mutuamente ininteligíveis. Para que comecem a comunicar-se uns com os outros é necessário que haja uma predisposição para isso, que o autor chamou de “simbiose”. Essa “simbiose” inicial é precisamente a comunhão de interesses e de objetivos que prepara o terreno para a “troca de palavras”, ou seja, para a comunicação, ou interação comunicativa.
Como concebida pela Ecolinguística, sobretudo a Linguística Ecossistêmica, comunhão não pressupõe nada. Ela é que é pressuposta para que haja interação comunicativa, ou seja, comunicação linguística eficaz. As palavras de Samarin recém-mencionadas podem ser um ponto de partida para essa discussão. No primeiro encontro dos portugueses com os índios tupinambás, quando a esquadra de Pedro Álvares Cabral chegou ao que hoje se chama Porto Seguro, em 1500 – no “descobrimento” do Brasil –, houve diversas interações entre as duas partes, que poderiam levar à formação de um pidgin. O fato foi minuciosamente descrito pelo escrivão da esquadra, Pero Vaz de Caminha, no que ficou conhecido como Carta de Caminha.
Do ponto de vista linguístico e cultural, não havia nada em comum entre portugueses e índios tupinambás. Os índios podem ter pensado inicialmente que se tratava de algum tipo de deuses que chegaram em uma grande canoa, ao passo que os portugueses não tinham certeza se os índios eram gente como eles. A despeito de tudo isso, houve algum tipo de precário entendimento, se for verdade o que Caminha escreveu, pois seu maior interesse era agradar ao rei. Em Couto (2001, 2003) há uma meia dúzia de exemplos de interações que parecem ter sido eficazes. Vejamos o primeiro deles: "o capitão mandou Nicolau Coelho ir a terra; logo, apareceram cerca de 18 a 20 homens com seus arcos e flechas na mão". Coelho “lhes fez sinal que posessem os arcos [no chão], e eles os poseram”. Vale dizer, no primeiríssimo contato houve algum tipo de entendimento, mediante gestos. Mas o que interessa no presente momento são interações que revelam uma “comunhão de ideias, de sentimentos”, uma “simbiose”, uma predisposição para a cooperação, uma boa vontade para interagir com o outro.
Uma das primeiras interações desse tipo é o fato de que lá para o terceiro dia do contato, os índios começaram a ajudar os portugueses a carregar água doce para encher os barris. Outro dia um português começou a tocar gaita e dançar, e os ameríndios o acompanharam, inclusive dando-lhe as mãos, todos rindo muito. Como disse Caminha, houve um momento em que “mesturavam-se todos tanto connosco, nos ajudavam deles a carretar lenha e meter nos batéis e luitavam com os nossos e tomavam muito prazer”. Em outros momentos, eles “dançaram e bailaram com os nossos”, atitude claramente comunial. No momento em que foi celebrada a primeira missa, os tupinambás imitavam tudo que os portugueses faziam: ajoelhavam-se, levantavam-se, sentavam-se e se persignavam. Essas “comunhões de ideias e de sentimentos” revelam que estavam em sintonia com os europeus, o que em Linguística Ecossistêmica significa que estavam em comunhão com eles.
Contrariamente ao que dizem todos os autores mencionados acima, exceto Samarin, não houve nenhuma troca de palavras. O que houve foi um tipo especial de interação, a interação comunial, ou simplesmente comunhão. Trata-se de puros atos de confraternização ou congraçamento. Dessa perspectiva, comunhão tem muito a ver com comunicação, mas não se confunde com ela. Se a comunicação consiste em solicitação de informação por parte de um interlocutor, seguida de seu atendimento pelo outro, ou seja, se comunicação é uma troca de informação por meio de palavras, a comunhão consiste em uma preparação do cenário para que essa troca seja eficaz. Comunhão não é troca de informação propriamente dita, mas a criação de uma predisposição nos indivíduos que estão juntos em determinado espaço para que isso se dê. Pelo fato de estarem juntos solidariamente, comungam de muitos interesses, entre eles uma abertura para a troca de informação. Se não por outros motivos, pela simples predisposição em si mesma. 
De um modo geral, pessoas que se veem juntas em determinado espaço fatalmente interagem entre si. A interação inicial, a que precede qualquer outro tipo de interação é uma tentativa de entrar em comunhão no sentido de “comunhão de ideias e de sentimentos”. Só depois desse primeiro passo é que poderá haver trocas de palavras propriamente ditas, diálogos, mesmo que sejam apenas para manter a união do grupo, ou seja, mesmo que sejam expressões meramente fáticas. Isso vale para a comunicação prototípica. Veremos que as altercações, brigas verbais também são algum tipo de "comunicação", mas são casos excepcionais.
Vejamos o caso de alguém que acaba de chegar a uma cidade pela primeira vez. Se precisar interpelar um transeunte para perguntar onde fica determinada rua, não o dirá de supetão: “Onde fica a rua Tiradentes?”. Pelo contrário, nos termos de Jakobson, primeiro ele tentará abrir o canal para a comunicação, mediante algo como “por favor!”. Ao virar-se para quem o interpelou, o transeunte praticamente já entrou em comunhão com ele. Portanto, a pergunta “onde fica a rua Tiradentes?” já poderá ser formulada. Normalmente haverá um atendimento a essa solicitação. Quando o interpelado não sabe onde fica essa rua, procura por alguém em volta que talvez possa atender o interpelante, numa atitude de boa vontade, de predisposição para ajudar. Essa prdisposição não é nada mais do que comunhão.
Quando recuperamos o sentido religioso original da palavra, verificamos que a existência de um código comum não é necessária para que haja comunhão. O mais importante é o próprio compartilhamento, não importa de quê. Tanto que a definição do Petit Robert diz exatamente que comunhão é "estar em comunhão de ideias, de sentimentos”. Nesse sentido, comunhão é um conceito ecológico mais amplo. Todos os seres animais tendem a ter atos de comunhão, e não apenas as aves, como sugeriu Jakobson, para proteção, reprodução, lazer etc. Veja-se o caso das bactérias. Talvez mesmo os vegetais interajam comunialmente. Pode ser que até mesmo a força de coesão no caso da matéria inorgânica seja uma espécie de comunhão no reino mineral. É isso que se pode ver explicitamente exposto em Couto (2009: 34-38). Sem aprofundar este tema, minha proposta é de que comunhão não pressupõe uma língua comum. Pelo contrário, é a comunicação e, por extensão a língua, que pressupõem algum tipo de comunhão prévia. Como disse Schaff (1968: 159) "o processo de comunicação só ocorre no mundo animal quando envolve o processo de cooperação, processo de ação social sui generis". Por "cooperação", entenda-se comunhão.
No caso dos seres vivos, e os humanos não são exceção, se essa interação for de hostilidade (simbiose desarmônica), poderá haver lutas, redundando até mesmo na eliminação do outro, ou de todos. Nesse caso, o agrupamento heteróclito acaba se desfazendo. Se a interação for de solidariedade (simbiose harmônica), os seres poderão passar a constituir um todo relativamente homogêneo, uma comunidade. No nível do orgânico, ocorre algo semelhante. Um exemplo seria a fertilização do óvulo que dá lugar ao feto. No nível do inorgânico, temos a força de atração e a de repulsão. Se prevalecer a segunda, as partículas (os corpos) se repelirão; se prevalecer a primeira, poderão aderir umas às outras, formando um novo corpo.
Alguns poucos autores salientam a importância do espaço nesse contexto. Assim, quando indivíduos, mesmo de culturas diferentes, se veem juntos em um mesmo espaço, ou seja, entram em contato, por uma questão de sobrevivência acabam entrando em comunhão, como a que se viu em Porto Seguro em 1500 entre portugueses e ameríndios. A partir dessa comunhão, inevitavelmente surgirão tentativas individuais de comunicação. Caso a convivência continue, essas tentativas acabam levando à emergência de uma comunidade e, consequentemente, à emergência de uma linguagem comum, como começou a ocorrer nos primeiros núcleos de colonização na África, América, Ásia e Oceania. A situação comentada por Samarin é o início de um desses processos.
Numa situação de contato de povos e línguas diferentes (contato interétnico, interlinguístico) é claramente a solidariedade (comunhão) que começa a preparar o terreno para o surgimento de uma comunidade. Nos primeiros momentos do encontro, tem-se apenas uma agregação cinética, como as pessoas no elevador, que nada têm em comum, motivo pelo qual ficam ansiosas para chegar ao seu andar e cair fora. Outro tipo seria a agregação tropista, como as pessoas debaixo de uma marquise para se proteger da chuva. Em nenhum desses casos há comunhão. No entanto, se a convivência no espaço perdurar, fatalmente surgirá algum tipo de comunhão, pois estão compartilhando uma situação sem saída. O modo mais comum de interação é a comunhão, ou seja, o estar satisfeito, ou conformado, com o simples estar junto. Se há alguma coisa para comunicar, isso é muito bom e bem-vindo. Se não houver, não importa. O que importa é a solidariedade, a predisposição para a convivência e a comunicação. No caso da criança adquirindo a língua de seu meio, isso se aplica integralmente.
Em síntese, no reino do inorgânico, a comunhão consiste na copresença espácio-temporal de partículas ou elementos, que se atrairão. Nesse caso, elas se aderirão uma à outra, formando um todo complexo. A sedimentação que dá lugar a rochas seria um exemplo. No reino do orgânico, ou biológico, a copresença espácio-temporal pode provocar um contágio, que pode levar, entre outras coisas, à formação de um novo ser, como na fusão de uma célula haploide (espermatozoide) com a do sexo oposto (óvulo) durante a fecundação para formar um zigoto. No reino do superorgânico, a copresença leva a uma solidariedade (comunhão), inclusive por uma questão de sobrevivência, que é o primeiro passo para o surgimento de uma comunidade e, consequentemente, de uma linguagem. A última, por sua vez, faculta a comunicação propriamente dita, manifestada no fluxo interlocucional, ou diálogo.
O fato de a palavra “comunhão” etimologicamente iniciar-se pelo prefixo “con-” não é casual. Muitas outras palavras iniciadas por ele indicam algum tipo de comunhão, como confraternização, comemoração, congraçamento, cooperação e outras. Isso porque a relação de junção indicada por ele pressupõe copresença de dois seres em um mesmo espaço, contíguos um ao outro. A recíproca também é verdadeira: sempre que dois seres (humanos, no caso) se veem juntos, interagem. Se não é comunicando-se, o que pressuporia uma linguagem comum, pelo menos comungando do mesmo estado de espírito a partir do qual a qualquer momento podem ocorrer atos de interação comunicativa, como se vê nas regras interacionais 1 e 2, expostas em Couto (2015a: 63-66). Deleuze (1976) já havia chamado a atenção para esse fato.
Como se pode ver no Vocabulaire technique et critique de la philosophie, de André Lalande (Paris: PUF, 1956, p. 152), comunhão é “similitude de sentimentos, de ideias, de crenças entre duas ou mais pessoas que têm consciência dessa similitude”. Por isso, comunhão é também “interatração ou agrupamento fundado sobre essa similitude”. Aí temos uma explicação para a comunhão que houve entre portugueses e ameríndios, ou seja, o fato de ambos os lados terem o dom da consciência. Deixando de lado a discussão filosófica e psicológica sobre o assunto (como no materialismo dialético), basta lembrar que a etimologia da palavra “consciência”, indica justamente saber (scientia) com outros (con-). Assim, a despeito de não ter havido atos de interação comunicativa, que pressupõem uma linguagem comum, em Porto Seguro, houve cooperação, congraçamento, enfim, comunhão, porque cada lado tinha todo um conhecimento do mundo, e sabia que o outro também deveria tê-lo. Portanto, o que propiciou a eficácia de alguns dos atos de interação comunicativa foi, além da copresença no espaço, que deu lugar a uma comunhão, a consciência de que cada lado tinha ciência (conhecimento) do mundo e de que o outro também a teria. Por isso, um lado compartilhava essa ciência (conhecimento), com o outro. Em síntese, a sequência evolutiva é a seguinte: a agregação tropista provoca uma interação entre os indivíduos; se essa interação for competitiva, de rivalidade, o agregado se autoaniquilará; se for cooperativa, terá lugar uma atitude de comunhão, que preparará o contexto para a comunicação. Logo, agregação cinética/tropista > interação > comunhão > comunicação.
Além de simbiose, que é um conceito ecológico mencionado acima por William Samarin, há outros conceitos da linguagem comum que lembram de perto a questão da comunhão. Um deles é 'convívio' ou 'convivência', que o Aurélio define como sendo “ato ou efeito de conviver; relações íntimas; familiaridade; trato diário".
Vejamos a comunhão no contexto da ADE, ou seja, Análise do Discurso Ecossistêmica (ou Análise do Discurso Ecológica), proposta em Couto (2014) e desenvolvida em Couto, Couto & Borges (2015). Contrariamente às AD tradicionais, na análise dos textos-discursos a ADE não enfatiza ideologias e relações de poder, mas a defesa da vida e uma luta constante contra o sofrimento evitável. Isso vai na direção da comunhão, aí inclusa uma compaixão pelo sofrimento de outro ser, não apenas humano, levando a suas últimas consequências o princípio ecológico das relações harmônicas, não apenas intraespecíficas mas também interespecíficas: todos os seres vivos são incluídos; até os não vivos como o ar, as águas, a terra sobre a qual vivemos, o sol que contribui para a vida na face da terra, a lua que embeleza nossas noites etc. É também uma tentativa de neutralizar o sentimento de ódio. É isso que defende a ADE, mediante a postura da comunhão. Não se trata de pieguice nem de ignorância de que as ideologias existem. Trata-se, ao contrário, de uma atitude de compaixão pelo sofrimento do outro (humano e não humano) e de não partir do conflito, botando mais lenha na fogueira político-ideológica. Trata-se, enfim, de tentar apagar o fogo à la Gandhi.   
Nesse sentido, defende-se o uso de uma linguagem que não ofenda o outro (humano e não humano), como detalhadamente discutido em Couto (2012). Não é pieguice, mas uma tentativa de procurar um equilíbrio com a força contrária da indiferença frente ao sofrimento do outro. Até mesmo de uma perspectiva antropocêntrica esses princípios devem ser respeitados pelos humanos, pois a vida humana depende deles. Defendê-los diretamente é defender a vida humana indiretamente.
Praticamente todos os regimes políticos que se instituíram revolucionariamente ruíram, mais cedo ou mais tarde, frequentemente também de modo abrupto. Em geral os que tiveram mais sucesso são os que foram surgindo evolucionariamente, para continuar usando a terminologia marxista. Enfim, como venho tentando mostrar desde Couto (1986), as “regras” que se instituem por cooperação têm mais chances de sobreviver do que as que se instauram por competição. Isso porque o primeiro procedimento leva a uma coordenação geral das vontades, não a uma subordinação da vontade da maioria à de um único indivíduo ou de um pequeno grupo dominante. A história tem mostrado que, contrariamente ao que propõe o marxismo, têm mais chances de sucesso os regimes que surgem seguindo uma evolução natural, paulatinamente, não os que emergem abruptamente, mediante uma revolução. Estes últimos tendem a desaparecer pelo mesmo processo. Tudo isso porque não levaram à comunhão entre os indivíduos que constituem a comunidade.

Descomunhão
A tecnologia atual está afastando as pessoas dos estados de comunhão no sentido que lhe foi atribuído acima. Acabamos de ver que ela é uma espécie de cimento social que mantém a coesão entre as pessoas. Vimos que a convivência comunial em determinado espaço é parte de nossa sociedade. Há comunhão no seio da família, entre cônjuges, numa comunidade paroquial, em uma firma etc. Enfim, há diversos níveis de comunhão.
Como mostrei em Couto (2015b), há situações em que o de se esperar seria que as pessoas ficassem em comunhão, mas o que se nota é justamente o seu contrário. É o caso de uma família composta de pai, mãe e dois filhos adolescentes em uma mesa de restaurante. Frequentemente eles ficam, todos, ligados no WhatsApp, trocando mensagens com alguém que não está ali, praticamente ignorando-se uns aos outros. Eles estão fisicamente juntos, às vezes com os ombros se tocando, mas não se percebem mutuamente. A isso, chamei de descomunhão, que é um estar junto fisicamente mas não mental nem socialmente. A descomunhão se dá nas situações em que o de se esperar é que haja comunhão, mas, na verdade, o que se tem é seu contrário. Daí o sufixo des-, que expressa a ideia de algo contrário ao que seria de se esperar.
Há quem ache que existe comunhão nessa situação. Para essas pessoas, tratar-se-ia de um outro tipo de comunhão. As pessoas nessa situação estariam cientes da presença dos demais e que, de vez em quando, se dirigem a eles. Além disso, estariam em comunhão virtual com alguém não presente espacialmente, ou seja, no mesmo T. No meu modo de entender, isso seria espichar por demais o conceito de comunhão. Ele tem uma acepção muito precisa, oriunda do cristianismo e até da Ecologia. Nesta última ela recebe o nome de interação harmônica, caso em que o caso que chamei de descomunhão seria, de alguma forma, uma interação desarmônica. O conceito está mais bem desenvolvido em Couto (2015b).
  
Observações finais
Gostaria de repetir que pode haver comunhão sem comunicação, mas não comunicação sem comunhão, a não ser nos casos de altercação, de brigas etc. Mas, isso não é comunicação prototípica, aquela que se dá entre dois interactantes face a face e em que há o desejo, às vezes até um prazer em comunicar, obedecendo as regras interacionais.
Contrariamente à tese daqueles que acham que há comunhão entre os cinco membros de uma família em torno de uma mesa que estão se comunicando com alguém fora dali via WhatsApp, pode haver comunhão até em nível de multidões. Inclusive intercontinental. No primeiro caso, podemos pensar nas pessoas que lotavam o estádio do Maracanã no momento da morte do corredor brasileiro de fórmula 1 Airton Senna. Assim que o fato foi anunciado pelos alto-falantes, houve um silêncio de um minuto em que se podia ouvir uma mosca voando. Isso é comunhão. Todos estavam em uníssono, em sintonia no sentimento de homenagem ao ídolo.
Vimos que duas pessoas que encetam um diálogo entraram primeiro em comunhão. Essa é, digamos assim, a comunhão mínima, que poderíamos chamar de comunhão interacional, pois ela se dá devido à necessidade de entrar em atos de interação comunicativa. Mas, podemos dizer também que uma comunidade de fala se mantém coesa devido a um sentimento de comunhão, de que compartilham uma linguagem, costumes, relações de parentesco, de amizade, de vizinhança etc. Trata-se de comunhão como cimento social. Nesse sentido, podemos dizer que o que mantém os membros da comunidade de língua coesos em torno de sua língua é algo parecido. Os habitantes de Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor Leste têm, pelo menos os que determinam os destinos dos respectivos países/estados, um sentimento de pertença à Comunidade de Países de Língua Portuguesa. Trata-se de algo que poderíamos chamar de comunhão sistêmica, pois, na verdade, o que os une é justamente o sentimento de compartilhar o sistema da língua portuguesa. Enfim, o conceito de comunhão é tão fundamental que perpasse a língua desde o sistema até a célula da comunicação, ou seja, o ato de interação comunicativa, passando pelas comunidades de fala de diversas dimensões.


Referências

Benveniste, Émile. 1970. L’appareil formel de l’énonciation.  Langages 17, p. 12-18.
Coupeland, Justine; Coupeland, Nikolas & Robinson, Jeffrey. 1992. “How are you?”: Negotiating phatic communion.  Language in Society v. 21, n. 2, p. 207-230.
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Couto, Hildo Honório do. 1986. O que é português brasileiro. São Paulo: Brasiliense (Col. “Primeiros Passos”, n. 164).
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sábado, 16 de setembro de 2017

A metodologia na linguística ecossistêmica


Este artigo está publicado em:

Ecolinguística: Revista Brasileira de Ecologia e Linguagem v. 04, n. 02, p. 18-33, 2018, disponível aqui:

https://periodicos.unb.br/index.php/erbel/article/view/12355


  

segunda-feira, 26 de junho de 2017

Ecossistema cultural


terça-feira, 28 de junho de 2016

(Hildo Honório do Couto, Universidade de Brasília)

=>Este texto está publicado em Ecolinguística: revista brasileira de ecologia e linguagem (ECO-REBEL), v. 4, n. 1, 2018, p. 44-58, em

http://periodicos.unb.br/ojs311/index.php/erbel/article/view/9914

terça-feira, 21 de março de 2017

Linguística Ambiental


Este texto está disponível em 

Ecolinguística: revista brasileira de ecologia e linguagem (ECO-REBEL) v. 5, n. 1, 2019, disponível  aqui:

http://periodicos.unb.br/index.php/erbel/article/view/22809/20553